quinta-feira, 29 de maio de 2014

Fairy tale

(From Chalk Dreams series) Rabbit on the Brain © Laura Burlton, 2010



Nunca percebi porque é que, de entre todas as pessoas, era sempre nos meus braços que aquela miudita se vinha aninhar, assim que deixava o refúgio seguro do colo da mãe. Parecia-me estranho que ela me escolhesse a mim; logo eu, que nunca soube como lidar com crianças. Mesmo assim, acho que aquela garotinha me conquistou e, por isso, sempre que ela me sorri com um daqueles sorrisos abertos que dizem “Faunchisca” e vem ter comigo naquele passo tão periclitante quanto apressado, nunca deixo de me aninhar e abrir os braços para a levantar comigo e sorrir-lhe de volta.
Ontem vi-a de novo e a cena repetiu-se mas, desta vez, levei-a ao meu quarto para lhe dar uma das minhas bonecas, que ela já tinha namorado há uns meses atrás. Quando entramos, ela encavalitada no meu pescoço e eu risonha e faladora como poucos têm oportunidade de me ver, abri caminho às escuras como sempre faço, porque havia, como há todos os dias, uma vela a arder, e essa claridade basta-me. Mas, quando a pousei no chão para procurar a boneca, ela falou-me muito séria:
_ Acende a luz… Isto assim é assustador!
Eu não pude deixar de me rir mas não lhe fiz logo a vontade. Em vez disso perguntei-lhe:
_ Assustador porquê?! Tens medo do escuro?!
E ela, mais séria ainda:
_ O escuro é cheio de monstros!
Pensei responder-lhe que o mundo lá fora está cheio de monstros bem piores do que os que ensombram a imaginação das crianças mas, por uma vez, achei que uma menina de ar tão inocente e sonhador, devia ser poupada ao gosto amargo do meu veneno. Por isso, limitei-me a sorrir e acender a luz do candeeiro pequeno ao mesmo tempo que me sentei sobre a cama. Ela veio aninhar-se entre as minhas pernas e pareceu-me tão pequenita, tão frágil, que aquela resposta, mesmo dada apenas em pensamento, me pareceu ainda mais cruel.
Sem saber bem o que lhe dizer e, talvez, querendo mostrar que a escuridão não era assim tão má, disse-lhe ainda:
_ Sabes? Eu moro aqui, no escuro; só com aquela velinha. E eu não sou um monstro pois não?
O “não” foi imediato, quase um gritinho mas, assim que ela fechou a boquita soube que ainda ia queria dizer mais alguma coisa; só não sabia bem o quê. Então ela abriu aqueles olhos muito grandes, muito azuis como um mar sereno e pôs a cabecita de lado, enquanto pensava no que me dizer. Não sei quanto tempo se passou até ela falar de novo porque os meus olhos tinham-se perdido na cascata de caracóis dourados que lhe caía do rostinho branco e redondo mas, de repente, ela abriu o mais largo dos sorrisos e, empinando a barriga por baixo do vestido esticou-se muito para ficar da minha altura e disse:
_ É fácil! Tu és a princesa e um dia vai chegar um príncipe que te vai tirar daqui!



terça-feira, 8 de abril de 2014

Ecce Homo

The Judge © Andreea Anghel



Enquanto os outros chafurdam na lama soltando grunhidos de fome, de dor e de cio, tu, eterno menino, construíste a tua casa no cimo de uma árvore e espreitas a lua por entre os ramos de salgueiro.



segunda-feira, 7 de abril de 2014

Um Refúgio na Dor

The Final Opening © Phil Barrington, 2013



Passou-se já muito tempo desde que descobri o significado de arrastar, atrás das duas palavrinhas com que me baptizaram ainda antes de nascer, uma série de nomes mais ou menos pomposos, daqueles que podem ser facilmente seguidos ao longo da história, fruto da passada promiscuidade da nobreza e do clero que nestas terras reinava. Estas famílias, ditas tradicionais, têm ainda hoje, uma espécie de código de conduta bastante peculiar. Desenganem-se aqueles que pensam que me estou a referir a famílias abastadas ou que, aquilo que as distingue são as fortunas, herdadas de geração em geração. Não. As fortunas de muitas já se foram; ficou apenas a arte (e é preciso muita) de aparentar sumptuosidade mesmo na pobreza. Mais do que qualquer outra coisa, o que distingue estes clãs é uma dose imensa de hipocrisia e uma obsessão quase doentia por uma “aparência” de normalidade. Nada é mais incomodativo para estes agregados, do que uma aberração no seio do lar. Há, claro, algumas aves raras que chegam a ser toleradas constituindo, mesmo, uma espécie de divertimento, uma private joke familiar mas, infelizmente para mim, sempre pertenci ao tipo de aberrações não toleráveis, nem pela mais benevolente das famílias.
Sei-o desde sempre mas houve um período, um único período da minha vida, em que essa noção se tornou perfeitamente insuportável. Lembro-me bem. Como poderia deixar de lembrar?! Lembro-me eu e lembram-se todos à minha volta, aliás; todos os que se esforçaram por negar o que era evidente e que, ainda hoje, agem como se nada tivesse acontecido. Mas lembram-se. de tudo. como eu me lembro.
Foi um tempo de noites sem sono, em que os dias se prolongavam pela madrugada e em nenhum momento me permitia qualquer descanso; um tempo em que as músicas eram ouvidas no volume máximo permitido pelo amplificador, dentro de um quarto escuro de portas trancadas onde as repetia como mantras, como se isso pudesse abafar todo e qualquer pensamento; um tempo em que escrevia com mãos trémulas de dor e de raiva e manchava os papéis de lágrimas. e de sangue.
Lembro-me de tudo. Como de um pesadelo demasiado vívido para que as suas impressões possam ser apagadas da mente. O problema era que aquele pesadelo era real. E durou demasiado tempo.
Tempo suficiente para o negro dos meus olhos flutuar num mar líquido e avermelhado, em vez do branco sereno onde antes repousava; tempo suficiente para os meus ossos se tornarem afiados como lâminas desejosas de rasgar cada articulação, de se insinuarem sob a menor prega de pele; tempo suficiente, enfim, para no meu corpo ter desenhado, a fio de navalha, o curso das dores que me atormentavam a alma, o rio de sangue das minhas mágoas.
Foi então que tu apareceste. Pouco depois de me terem confrontado com aquela mulher de bata branca, que enfrentei com o mais fechado dos semblantes e o mais cínico dos olhares enquanto ela arranjava nomes para os distúrbios mentais de que, sem qualquer dúvida da parte dela ou dos meus familiares, sofria; pouco depois de me terem despojado dos trapos com que escondia os braços pisados e manchados de sangue; pouco depois de eu me rir na cara de toda aquela gente, de me rir como se pudesse, naquela risada, encarcerar toda a dor e todo o ódio do mundo, de me rir, enfim, até não conseguir conter mais as lágrimas.
Tu apareceste pouco depois. O meu único conforto no desespero e único refúgio na solidão. Apareceste quando o medo começava a corroer-me as entranhas e eu deixava de ter forças para lutar; apareceste quando, à noite, me aninhava na cama e cravava as unhas na carne e os dentes nos lábios para me impedir de adormecer; apareceste quando o sono me trazia de volta todos os meus fantasmas, tudo o que tentava esquecer durante o dia.
Não falei de ti a ninguém. Nunca. Sei bem o que diriam de mim se o fizesse; sei bem que outro rótulo aquela criatura de rosto bicudo e bata branca acrescentaria na minha ficha se soubesse da tua existência; como sei perfeitamente o que diria a minha família se de ti lhes falasse. Sei o que te chamariam: delírio, alucinação. Alguns, optariam talvez por uma definição mais bondosa; aquela do “amigo imaginário”, sabes?
Por isso guardei-te para mim, só para mim. Dentro de mim; precisamente onde tinhas nascido. Quando o véu da noite descia e me enroscava na cama, deixava descer as pálpebras já sem medo, porque sabia que os teus olhos imensos estariam lá dentro, a mirar-me. Nunca soube como nasceste dentro de mim, mas sabia que estavas lá e isso bastava-me. Durante muito tempo foste o meu único refúgio na dor e comecei a acreditar sinceramente que, um dia, quando vissem os teus olhos a brilhar dentro de mim, os meus fantasmas haviam de fugir. E isso deu-me forças. Tu deste-me forças.

Tudo isto já se passou há muitos anos, creio que o saberás. Há tantos anos que algures no meio do caminho, perdi-te. Fechava os olhos e não havia ninguém a fitar-me. Foi um vazio difícil de suportar. Demasiado difícil. Talvez por isso, nunca deixei de te procurar; nunca deixei de fechar os olhos ao ouvir uma música bonita ou ao ver uma imagem comovente… Esperava ver-te a sorrir-me, quando o fizesse mas tu tinhas fugido de mim.
Cheguei a pensar se não serias a tal “alucinação”, o “amigo imaginário” de quem falam os psicanalistas e afins. Mas não. Depois de todo este tempo, encontrei-te. Finalmente. E percebi que és real, que existes para além dos meus olhos fechados e do véu descido das minhas pálpebras. E nem precisei de ver os teus olhos grandes, de menino, cheios daquela bondade feroz que sempre te conheci, para o saber.



sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Dos Abismos

I. O menino e o cão

Ao Vitor Vicente,
no dia do seu aniversário
(From The Disasters of War series) Untitled © Gottfried Helnwein, 2007 




Só D*us sabe de onde viera e a que mortais demónios devia as cicatrizes que lhe deformavam o corpo. Isolara-se ali por vontade própria, longe de tudo e de todos; das ameaças como da segurança; das sombras temíveis como do conforto dos rostos conhecidos. Ali, naquela ruína escavada na terra, vivia só, empoleirado na certeza de nada temer como num trono, sem mais a que se agarrar para além da glória de não depender nem precisar de ninguém. Pouco passava dum menino mas, se alguém houvesse capaz de se embrenhar naquela escuridão para o procurar, não encontraria, naquele rosto, qualquer sinal da inocente frescura da infância; apenas um olhar feroz e gélido, de desafio mais que de força.
Mas, se gente não houve capaz de descer àquele abismo, outro percorreu léguas até ali chegar, molhado e frio, numa magreza extrema de quem tinha deixado as forças pelo caminho: o cão. Não era um cão qualquer, claro. Tinha sido, há tanto tempo atrás que parecia noutra vida, o cão daquele menino; companheiro de brincadeiras e gargalhadas. Hoje, porém, não era mais que uma sombra mirrada do cachorro feliz que o acompanhara um dia. Doente e desnutrido, era uma triste visão, suplantada unicamente pela visão triste daquele miúdo feito pedra. Por isso, ao vê-lo ali, bateu-lhe. Bateu-lhe uma, outra e outra vez. Bateu-lhe e enxotou-o; e atirou-lhe pedras; e chamou-lhe nomes. E voltou a bater-lhe; a enxotá-lo; a atirar-lhe pedras; e a chamar-lhe nomes ao ver que, apesar das patadas, o cachorro sempre voltava, na vã tentativa de se aninhar junto aos seus pés, àqueles mesmos pés que, pouco antes, uma vez após outra, o haviam torturado.
Lá fora, os dias fizeram-se noites, e as noites deram lugar a novos dias; rodaram as luas; mudaram as estações. E o miúdo cansou-se a bater-lhe, a enxotá-lo, a atirar-lhe pedras e a destratá-lo. Até ao dia em que, de tão cansado, adormeceu. E, quando acordou, estava quente, estranha e reconfortantemente quente, apesar do vento que se ouvia lá fora e da humidade de sempre entranhada naquelas paredes. Era o animal. O maldito cachorro aproveitara a distracção do dono para junto a ele se aninhar e adormecer. Naquele dia, bateu-lhe ainda mais do que o costume; mais do que alguma vez fizera e, por fim, viu que, entre ganidos, o animal partia a coxear, como uma imagem da tristeza infinita.
Passou-se esse dia, e o seguinte, e mais outro, e outro mais. Agora está só. Tudo em redor é negrume. E o menino ri-se naquela solidão; ri-se na certeza de que o cachorro aprendeu finalmente a lição e partiu, cansado de levar pancada; no júbilo cruel de quem sabia, de antemão, já não haver bondade no mundo. Sem saber que o animal nunca chegou sequer a afastar-se; jaz ,lá fora, na poça negra do seu próprio sangue.



domingo, 12 de janeiro de 2014

"Espelho meu..."

Sem título © Emil Schildt




Esgotados todos os risos e gastas todas as palavras, resta-nos a aveludada imensidão do silêncio e nela, na grandeza silente deste lugar chamado desejo, o momento em que os teus olhos encontram os meus e os perscrutam, como se precisassem; como se não soubessem, já, que, uma vez atravessadas as camadas vítreas de brilho superficial e chegados à água negra e funda onde escondo a alma, não encontrarão nada para além do teu reflexo em mim…




terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Ampulheta

(From the Nostalgias series) Untitled © Ana Priscila Rodriguez, 2008



Estendida na cama depois de mais um dia como todos os outros, abandono o corpo a uma lassidão sonolenta, baixo lentamente as pálpebras como cortinas sobre os meus olhos negros e deixo-me ficar. Quieta. À excepção do ligeiríssimo arquear do meu peito cada vez que o organismo reclama oxigénio, nenhum outro movimento anima os meus membros, o meu rosto, a minha carne ou o meu corpo inteiro. Não sei por quanto tempo ficarei assim, adivinhando, por entre as pálpebras quase adormecidas, o tremelicar nervoso da vela que, altiva, se ergue acima dos livros empilhados na mesinha de cabeceira, aqui ao lado. Sorriso. Um sorriso só. Sorriso-irónico, todavia doce. Lembro o dia que há-de chegar, em que uma rajada de vento mais impetuosa atravesse furtiva as portadas da janela e derrube a vela sobre os meus livros. Lembro o cheiro de papel queimado, a luz alaranjada e cada vez mais intensa, que hei-de adivinhar mesmo com os olhos cerrados. E lembro a vontade de permanecer aqui, quieta, estendida, silenciosa. Até ser una com a chama. O meu espírito não conhece o Tempo e, na minha cabeça, os tempos verbais confundem-se como se fossem um só. Para mim não há pretéritos, passados ou futuros. O hoje pode ser um momento que nunca chegará a existir, o futuro pode surgir como uma lembrança tão concreta como o dia de ontem, e o passado pode ser reinventado, redesenhado, remodelado ou apagado. Por isso é que o Tempo deixou de ter importância para mim. Por isso é que me deixo ficar estendida e sonolenta nesta cama fria e impessoal. A passagem das horas, que desencadeia o longo arrastar dos dias e um penoso acumular de semanas (e meses. e anos.) é insuportável para aqueles que, como eu, esperam algo que nunca (nunca) virá a acontecer. Por isso alheio-me ao tempo e deixo que, em mim, se aloje a memória de todos os dias que passaram, juntamente com os dias que hão-de vir. E, nesse emaranhado de datas que desafia o pachorrento e previsível arrastar do calendário, arrisco-me ainda a recordar os dias que nunca hão-de vir. Aqueles pelos quais há tanto espero.
Ouvem-se passos nas escadas.
Num instante sou arrancada a este morno torpor do pensamento. Sei que és tu quem vem a subir e isso basta para que o arquear até agora imperceptível do meu peito, se torne mais intenso e profundo, como se, respirando assim, pudesse sugar-te dessas malditas escadas e trazer-te até mim. Doce ilusão… a lembrança do dia em que virás até mim é daquelas que nunca hão-de vir. E eu sei-o. Embora isso não me impeça de a recordar constantemente.
Mais passos na escada. Cada vez mais perceptíveis, mais intensos à medida que te aproximas do patamar.
Malditas escadas. Malditos degraus de madeira que gemem dolorosamente a cada passo e me tornam consciente da tua chegada. Malditos. Malditas escadas, maldito patamar. Maldita casa antiga com os seus corredores sem janelas. Ah, o corredor… Maldito. Maldito acima de todos os outros. Um único corredor, nem grande nem pequeno, nem feio nem bonito, mera passagem. Um único corredor a separar duas portas, dois quartos, duas vidas totalmente independentes. A minha e a tua. Sempre que subo essas mesmas escadas, deixo o meu olhar triste e vazio espraiar-se nesse corredor tão sombrio que nos separa. É uma distância tão pequena e, no entanto, a mais intransponível de todas as distâncias.
Os passos nas escadas são agora mais audíveis do que nunca. Pesados. Seguros. Passos poucos que me deixam adivinhar um corpo que conheço só de sonhos.
O arquear do meu peito torna-se mais intenso, quase doloroso. Sei que chegaste ao patamar. Não tarda estarás a dirigir-te para o teu quarto e, por isso, este é, de todos os momentos, aquele em que estás mais próximo de mim. Precisamente antes de te começares a afastar. É este o mais feliz e o mais doloroso de todos os instantes.
Paras no cimo do patamar, antes dos teus passos resolutos te levarem para longe de mim. Paras. Não há mais barulho de passos pelo menos por uns instantes.
Gosto de pensar que estarás, como eu quando percorro esse mesmo caminho, a sentir os nossos cheiros misturados. Do teu quarto vem um cheiro de livros antigos, sempre com um ligeiro travo de cigarro. Do cigarro que acendes mais vezes do que deverias ou seria necessário. Do meu vem um aroma de canela, dos incensos que deixo a queimar na minha ausência, misturado com o cheiro de açúcar queimado, prova das minhas tentativas falhadas para, na cozinha, adoçar a vida. São cheiros muito diferentes, os nossos, mas nesse local, nesse preciso local, misturam-se. E eu paro sempre inebriada com aquele aroma agridoce que resulta tão bem como se de um só cheiro se tratasse. Por isso gosto de pensar que, quando paras no cimo das escadas, estás a sentir o mesmo.
Lá fora, voltam a ouvir-se passos.
Mas… que se passa?! Não parecem afastar-se.
Continuam intensos. Cada vez mais intensos.
Que há?... Sinto que te aproximas. Os teus passos ecoam no corredor e são amplificados pelas paredes antigas. Chegam-me aos ouvidos como um ruído ensurdecedor e vêm morrer no meu coração. Acelerado. Tão acelerado. Mais passos. Mais próximos.
Será que estou a enlouquecer? Eu sei que este é daqueles dias que nunca vão acontecer. Então porque é que os teus passos te trazem hoje até mim? Estarei louca?... Será delírio?...
Os passos calam-se novamente. Estás parado à minha porta. Sei-o.
Quantas vezes não esperei sentir-te aí… Tão próximo… O meu corpo treme, num delírio quase febril. Tento suster a respiração. Ouvir qualquer som. Ouvir-te. Ouvir a tua respiração atrás da minha porta. Tento ouvir-te mas o quarto está mergulhado num profundo silêncio. E, detrás da porta, nada se ouve. Fecho os olhos com força e cerro os punhos obrigando-me a ficar deitada, apesar da minha vontade ser de correr até aquela porta de madeira e abri-la da par em par. Mas contenho-me. Olhos fechados, como quem dorme. Sei que, se realmente o quiseres entrarás. Há muito tempo que não fecho aquela porta. Está no trinco. Sem chave. É a minha forma de dizer que te espero. Há tanto, tanto tempo… também é a minha forma de te ouvir melhor. Como quando a música se eleva no teu quarto, suave e triste como uma carícia. Nesses momentos chego a entreabrir a porta para a ouvir melhor. E, na escuridão espessa que reina nestas quatro paredes, volteio como se dançasse contigo.
Um ruído. Finalmente. O puxador a rodar a medo.
O meu coração bate tão acelerado que parece ribombar nos meus ouvidos. Certamente que o ouves, mesmo à distância, a bombear o sangue pelo meu corpo, todo ele sangue. Vermelho. Palpitante. Talvez não o devesse fazer mas finjo-me adormecida. Mesmo quando os teus passos ecoam já no interior da divisão… mesmo quando paras junto a mim e desces o rosto ao nível do meu como quem vigia, diligente e preocupado, o sono de uma criança. Sei que ouves o bater do meu coração. É impossível que o não ouças. Mas eu resolvi fingir e tu representas comigo. Finjamos, pois, que não nos conhecemos e que nada dizemos um ao outro. Finjamos que as nossas almas não se misturaram já; que não se fundiram ao mesmo tempo que os cheiros dos nossos quartos. Antes, até. Finjamos, pois. Fingirei até sentir os teus lábios descerem ao botão rubro da minha boca para o sorverem e, se nesse momento não conseguir mais fingir e os meus olhos se abrirem num lago transbordante deste amor doloroso que guardo dento de mim, finge então tu… finge que não sabes o quanto significas para mim mas… fica comigo.




quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Peter Pan

Grey Villet's feet dangling over Fifth Avenue, New York © Grey Villet, April, 1954



Chamam-me o “eterno menino.” E sorriem. Sorriem, sem saber que não passo de um velho; um velho que teima ainda em ser criança, num autismo tão feroz quanto inocente, de quem sabe que todos os outros cresceram, já, e não há, lá fora, mais ninguém com quem brincar. Chamam-me “eterno menino.” E sorriem. Deviam chorar.



terça-feira, 22 de outubro de 2013

Da Solidão em todos os lugares

I. Dublin


Sem título© Isabel Vicente, 2013



Mais uma cidade. Três noites e um horizonte largo, desconhecido, debruçado à beira-água num sorriso púrpura de amante apaixonado... Estou só, como sempre. E nesta solidão, como nunca, tudo é imensamente mais triste e insuportavelmente mais belo. Assim mesmo.



segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Como uma Casa

À Biazinha,
que merecia um "conto" bem mais luminoso 
do que aquilo que sou capaz de oferecer.

The Mission© Ruela, 2012 



Ninguém sabia ao certo de onde viera ou porque permanecia fechada em casa há décadas, sentada na mesma cadeira de baloiço, única mobília de uma sala com todas as paredes forradas a livros, embalando-se numa cadência lenta e silenciosa sobre o chão coberto de tapetes. Tudo quanto sabiam era que era velha, tremenda e imensamente velha. Tão velha que até os mais velhos da aldeia se lembravam de, enquanto crianças, se terem sentado à sua volta, sobre os tapetes fofos como gatos, ouvindo-a falar da vida e do mundo. Não que ela tivesse viajado muito (nunca ninguém a vira dar dois passos sequer na segurança do pequeno terreno que rodeava a casa, no centro da aldeia); nem precisava. Ela tinha lido todos os livros do mundo: conhecia todas as palavras, sabia todos os segredos, explicava todos os enigmas. Não havia pergunta para a qual não tivesse resposta. Ela tinha, afinal, todas as respostas do mundo. Ninguém, nunca, duvidara disso. Ninguém, nunca, lhe pusera uma questão à qual ela não conseguisse responder com a segurança de um sorriso e aquela deliciosa e infindável paciência das avós. Talvez por isso, todos a tratavam como tal, embora nenhum parente lhe fosse conhecido. Na sua cadeira de baloiço, sobre os tapetes macios de gatos, ela era a imagem da experiência e da sabedoria, aquela diante da qual todas as perguntas encontravam respostas. Alguém assim era, mais do que uma inspiração, uma bênção.
Ela, no entanto, sabia que havia uma pergunta para a qual não teria resposta, uma palavra capaz de fazer abalar (ou ruir) a sua estrutura e tornar inúteis todos os seus conhecimentos. A cada novo grupo de garotos aninhados aos seus pés, a cada nova geração que ali se sentava em busca de respostas, os seus olhos perscrutavam, atentos, tentando adivinhar qual seria o miúdo de carita redonda e olhos curiosos, a questioná-la sobre aquilo; tentava adivinhar de que boca sairia a pergunta que iria ficar sem resposta. Esta expectativa começara por ser uma angústia mas, à medida que os anos foram passando, ela acabara por se convencer que ninguém lhe iria colocar aquela questão. Talvez, afinal, essa resposta fosse conhecida de todos. Esse pensamento acalmou-a e permitiu-lhe manter-se anos e anos baloiçando-se indolente por entre os seus livros.
Até ao dia em que uma miúda entrou de rompante pela sala, ofegante, consequência de uma correria louca e estacou à frente dela, os longos cabelos atirados para trás, deixando realçar uns olhos de brilho invulgar. Foi então que ela soube que tinha chegado o momento.
_ O que é o amor?
Engoliu em seco e a voz saiu-lhe mais débil do que o normal:
_ Não sei, minha filha.
Após um momento de silêncio, um momento de choque, a miúda recuperou as forças e gritou misto de revolta e angústia:
_ Tem de saber! Tem de saber! Toda a gente fala dele! É impossível que não o conheça! Está em todos os livros do mundo!
Ao ouvir estas palavras, ela sentiu-se fraca. E cansada. Naquele instante os seus olhos perderam o brilho e a pele encarquilhada perdeu toda a frescura que ainda parecia conservar. Quando por fim respondeu, parecia ter envelhecido um século:
_ Não minha filha; eu só conheço o medo.



sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Moldura de Sonhos


Ao Ruela,
que cria imagens onde antes existiam apenas palavras.

Teardrop, © Ruela, 2009




A minha janela. Durante anos convenci-me que não havia, no mundo, outra que se lhe comparasse; na minha janela havia qualquer coisa de mágico como se, através dela, lá do alto, eu pudesse ver mundos aos quais ninguém mais tinha acesso por não haver outro miradouro como o meu. Por isso, sempre que podia, deixava cair a noite e subia subrepticiamente ao parapeito, onde me deixava ficar sentada horas e horas, olhando os céus. Conhecia cada estrela, cada fase lunar, cada luz pisqueirinha de um qualquer avião que se atrevesse a cruzar o manto da noite... e sonhava... sonhava muito. Acho que sempre foi esse um dos meus problemas: sonhar demais. E, quando se delira tanto, a realidade tem um gosto amargo, por ficar aquém da ilusão. Não foi, como é natural, difícil aperceber-me disso; até uma miúda tonta que julga ter uma janela mágica consegue descer à terra volta e meia, e encarar a realidade. Por isso, à medida que os anos foram passando, eram cada vez menos as vezes em que me sentava naquela moldura de madeira com as pernas a balançar perigosamente do lado de fora da casa. Não sei bem quando o deixei de fazer mas, olhando para trás, parece-me ter sido há uma eternidade; a mesma eternidade que passou desde que decidi deixar de sonhar; aquela eternidade que se arrasta desde que deixei de ser a catraia tonta que acreditava ter uma janela mágica...
Ainda assim, há dias em que tenho saudades daqueles pilares que emolduravam os meus sonhos, e por vezes, volto a aproximar-me da minha parede de vidros e a fitar a imensidão do horizonte. Mas faço-o apenas em dias como o de hoje, em que os céus estão cinzentos e tristes, tão tristes que as lágrimas que choram escorrem pela superfície lisa e fria da minha janela. Creio que me aproximo apenas nestes momentos por ser mais difícil sonhar num dia assim. Hoje, no entanto, quando comecei a sentir a chuva que escorria pelos vidros toldar-me o olhar, vi-te lá ao fundo, lá longe na rua, para onde a minha atenção nunca é desviada. E acenaste-me, mesmo daquela lonjura. Um aceno que era, todo ele um sorriso, como um convite para dançar. E eu, nem sei bem como, sorri-te de volta e, sem pensar duas vezes, virei costas à janela e desci as escadas a correr, pronta a ir ter contigo. Não olhei para trás, sabes? Mas tenho a certeza que, nas pequeninas bolas de cristal que pejavam os vidros da minha janela mágica, se podia ver uma miudita de cabelos negros empoleirada no mais improvável dos locais.



sexta-feira, 12 de julho de 2013

De Mãos Vazias

Ao Guilherme Lima, 
por um tempo irrepetível. e inesquecível.

BrainStorm nest, © Ruela, 2013




É tarde e estou cansado. Acabei de chegar a casa depois de mais uma noite de amigos e copos. Devia sentir-me mais leve; não é isso que dizem do álcool, como das outras drogas? Que nos inebriam e fazem deixar de pensar? Antes fosse… A mim, há muito já que tais subterfúgios, formas milenares de escapar à dura realidade, deixaram de funcionar. Sempre pensei demais. Talvez seja esse o meu maior defeito. Verdade seja dita, creio que era também o teu maior defeito. “Mais razão que coração”, não era? Sempre fomos assim… Julgo até que foi por isso que consegui amar-te, por me ver reflectido no brilho resoluto e até frio que o negro dos teus olhos assumia de quando em vez. Hoje sei que era verdade quando dizias que tinhas neles um abismo e, por isso, raramente encaravas as pessoas de frente. Só não sei se o descobri tarde demais.
Devia ir dormir, eu sei. O avançar das horas e os muitos gramas de álcool por litro de sangue devem estar a começar a fazer efeito. Sinto que já não penso com clareza. Ou, pelo menos, com a clareza que me seria necessária para te escrever. Mas, com o passar dos anos, a tua ausência foi-me pesando mais e ganhei este hábito de te rabiscar umas linhas. Sempre foste uma boa ouvinte e, de certo modo, sei que me ouves ainda, apesar destas palavras, como todas as outras que escrevi antes delas, nunca chegarem às tuas mãos. Normalmente, digo a mim mesmo que é por isso que te escrevo. É a minha forma de negar que sinto a tua falta. Mas sinto. É por isso que não me vou deitar. Olhei a cama de soslaio mas sinto falta de adivinhar nela a voluptuosidade morna das tuas formas. Já lá vai tanto tempo… Tanto tempo… Nos anos que passaram desde que deixaste de te aninhar ali, como um gato, já tive um sem-número de mulheres. Perdi-lhes a conta, até. Nunca nenhuma me disse nada. Como acho que nada disse a qualquer delas. Mas sabes? Em todo este tempo, nunca ninguém ocupou o teu lugar ali. Desde que partiste aquela cama é de um só. Minha. Ou ainda nossa, porque às vezes chego a sentir-te comigo.
Se calhar estou a enlouquecer, não sei. Sempre fomos propensos a devaneios e loucuras. Acho que a idade veio acentuar isso.
É… a idade.
Não vais acreditar mas só hoje me apercebi que estou a envelhecer. O espelho tem-me enganado bem: os cabelos mantêm-se negros e não adivinho rugas no meu rosto, como sei que ainda as não tens no teu. E no entanto, hoje olhei para as minhas mãos e vi-as velhas. Enrugadas e enegrecidas. Já não tenho mais os dedos longos que gostavas de elogiar. Mãos de pianista, dizias…
Gostava de saber o que dirias se as visses agora.
A verdade é que desde que te foste elas nunca mais tiveram descanso. Pode parecer ridículo mas se me perguntasses o que senti quando te foste embora, ficarias surpreendida. Não me doeu o peito, não me pesaram os dias, nem a minha cabeça se tornou mais confusa ou perdida do que já era habitualmente. Não. O que senti foi, apenas e só, um insuportável vazio nas minhas mãos. Nada mais. Sei que isto não é, provavelmente, o que qualquer mulher esperaria ouvir, nem mesmo tu, sempre tão diferente de todas as outras mulheres. Não é. Mas é a verdade. Cada vez que olhava as minhas mãos desertas sabia que nunca mais as poderia aquecer no teu corpo nem afundar no emaranhado revolto e macio dos teus cabelos. Então comecei a ocupá-las. Sempre. Dos cigarros passava aos copos de whisky e dos bordos dos copos aos lábios de outras mulheres e, desses corpos anónimos e desconhecidos, voltava ao papel e à esferográfica com que te escrevo quase diariamente. Tudo para nunca as ter desocupadas. Mas elas continuam frias, apesar de todo o meu empenho. Geladas. Desde o dia que te foste embora. Às vezes sinto que esse gelo se está a apoderar da minha alma e é isso que dói.
Hoje tomei uma resolução. Acho que encontrei um jeito destas mãos vazias não me atormentarem mais. Lembras-te da arma que guardava na mesinha de cabeceira, mesmo ao lado da cama, embrulhada num lenço de veludo?! Aquela que, para teu tormento, eu gostava de afagar como se fosse um animalzinho de estimação? Acho que é tempo destas mãos tomarem o peso daquela coronha. Uma última vez. Sei que ela é ainda mais gelada do que eu, e assim, posso ir embora com uma sensação morna e doce, como quando afagava a cascata dos teus caracóis. Acho que é disso que sinto mais falta, acreditas?


Quando vieres, porque sei que virás, traz-me uma braçada de rosas brancas, trazes?
Sempre foram as minhas preferidas; tenho a certeza que ainda te lembras…





quinta-feira, 2 de maio de 2013

"Imitation is the sincerest form of flattery."
(Charles Caleb Colton)


Shopper, © Saul Leiter, 1953




Desde que tenho memória de mim, sou a criança no escuro fascinada por uma luz ao longe, a minha solidão nasceu comigo, descerrei da treva os olhos para vaguear altas horas num labirinto de ruas caladas, há sempre uma janela iluminada, fico quieta a ser uma sombra e sonho, parecem-me sempre felizes os mundos por trás de janelas acesas na noite. Isto deve ser uma tara qualquer, dessas que levam as mulheres a abanar a cabeça tristemente e murmurar em surdina “coitadinha” com ar de quem diz “tão nova e já tolinha”, sem saber que isto não é loucura, é outra coisa, sem nome, que atormenta quem nunca soube crescer por não ter podido ser menina. Depois vive-se assim, a enganar o tempo, que passa para os outros mas não para nós; cresce-se a engolir a raiva, a engolir a raiva com lágrimas; guarda-se o sofrimento como uma pedra na boca e o amor como uma pedra na mão. Percebe-se que o nosso lugar e o escuro e o silêncio, que aí estamos protegidos porque são os dois grandes temores da Humanidade e sentamo-nos sobre o fogo e o gelo; nada mais resta do que ser uma criança valente, e esperamos... “Um dia eles ainda hão de ter orgulho em mim”. Enquanto eles passam lá fora, reflexos distorcidos pelo vidro da janela, levando um cachopo loirinho, tão lindo, pela mão. Depois percebe-se que não há orgulho capaz de conquistar um amor que nunca existiu, que sorrisos são máscaras forjadas e abraços protocolos circunstanciais, descobre-se que se nasceu estrangeiro e não há no mundo lugar para gente como nós. Então viaja-se, foge-se, procura-se conforto na certeza dos lugares que, não sendo nossos, não poderíamos sentir como lar já que, aquele que o deveria ser nunca o foi. E os sorrisos, aqueles sorrisos de cera, perdem-se na distância de um telefonema roufenho e sem sentido, de quem nunca teve o que dizer.
 *   *   *
O rapaz do bar é-me desconhecido. Como todos os que o rodeiam. E todos os que me rodeiam. Ou a língua que falam entre si. Tudo é novo, e estranho, e distante. E há um certo aconchego nisto, nesta ausência total de referências e conhecimentos. Aqui ao menos, como noutro qualquer bar perdido na noite em que nunca entrei, ou num outro país de língua enrolada que nunca ouvi, posso sentir-me estrangeira à vontade; aqui, ao menos, esta sensação é-me legítima. Nesta terra, mais do que em qualquer outro lugar, está-me estampada no rosto moreno e no negrume dos cabelos esta condição de estrangeira, como um vento quente trazido do deserto, que fustiga os olhos dos incautos como este o rapaz que, solícito, se abeirou do balcão para me atender. Não veio por simpatia mas por curiosidade, instinto de macho que adivinha na curva generosa das minhas ancas uma quentura que não há por estas paragens, um ninho onde poderia abrigar-se por instantes para fugir do frio que por cá reina, como uma lareira aconchegante na noite escura. E ronda-me, à espera de desvendar o segredo que trago por detrás dos olhos fundos, mais negros do que a noite escura que se estende lá fora, tão negros como ele nunca sonhou existirem, habituado como está às águas calmas e translúcidas que estas mulheres trazem no olhar, como uma promessa de céu. É belo, uma ode viva à juventude e à força e quando me olha desafia-me insinuante, não é um olhar de pedidos mas de promessas, de quem sabe que me daria prazer, assim eu quisesse, como qualquer outra mulher. O que ele não sabe é que o fogo que me anima as ancas não lhe trespassaria apenas o corpo – mas que seria chama capaz de lhe consumir a alma num tormento. Não deixo gorjeta, não me despeço, sequer sorrio. Levanto a gola negra do casaco comprido e saio.
Merda de cidade, tão fria. Eu não estou aqui.



*Inspirado noutra página, de um outro moleskine

domingo, 21 de abril de 2013

Nocturno

À minha irmã

Sem título, © Vitor Vicente, 2013



Lá fora a Noite cai e estende o seu manto negro pelo céu, salpicado aqui e além por uma ou outra estrela, como diamantes atirados sobre uma colcha de veludo antigo. Só agora tenho vontade de sair.
A porta do guarda-fatos parece dar directamente para um abismo. Tudo negro. Tão negro como o céu que me chama através da vidraça. Deslizo as mãos por entre estas peças e fecho os olhos à espera de sentir, de todas elas, a que tem o toque mais macio. Quando por fim a encontro, tiro-a, sorrio-lhe e visto-a. É invariavelmente longa, como todas as outras e, como todas elas, parece saída de um qualquer guarda-roupas rico, de há uns poucos séculos atrás. Démodé, é um facto. Mas linda; um dos poucos gostos que me permito e talvez a maior extravagância que me define. Visto-me assim, com rendas e veludos, sedas e cetins, como se a vida fosse uma festa. Ou uma farsa. Um filme de quinta onde não passo de uma figurante, com os meus vestidos compridos e maquilhagem exagerada. Medíocre.
Paro ainda em frente ao espelho tentando, com lápis e sombras, esconder os traços de menina deste rosto que há muito deveria ser de mulher. Poucos castigos há como este de ver reflectida o mesmíssimo rosto de há tantos anos atrás; o rosto de uma criança que não existe mais, como um sinal eterno de meninice quando, da infância que passou, tudo perdi. Até os sonhos.
Desço sem pressas porque sei que, no fundo das escadas, ninguém me espera. Nem lá fora, na Noite fria. Há muito que não há ninguém há minha espera porque há muito me recusei aos pequenos prazeres que uma tal presença me poderia oferecer. Por isso não há braços fortes e quentes onde me possa aninhar, nem tenho um lugar ao qual possa chamar lar. Sempre foi assim: estrangeira em qualquer país e deslocada na minha própria casa, mera hóspede da própria vida. Mas ainda há sorrisos; momentos bons apesar de tudo. Há as horas de conversa fiada com os amigos, o sorriso doce da minha irmã, o ursinho de peluche onde aninho a cabeça todas as noites, uma estante carregada de livros poeirentos à espera de alguém que os olhe e cuide, uma caneca de chá quente numa destas manhãs cinzentas do Porto em boa companhia, o calor de um gato aninhado no meu regaço, o cheiro doce de canela do incenso que reina no meu quarto ou aquele rafeiro que passa por mim todas as manhãs e me faz uma festa enorme como se há anos me conhecesse. Há tudo isso, os prazeres banais a que me permito ainda. Mas nada mais que isso. Sempre fui organizada e não quero deixar atrás de mim um rasto de distúrbios ou tristeza, como fazem as tempestades. Os hóspedes são assim: nunca se sabem se a estadia será tão prolongada quanto desejariam. Quanto a mim, não sei quando terei de entregar as chaves e sei que, assim, não farei estragos. Mais estragos.
Mas agora nada disso importa… Importa apenas o abraço gélido da Noite, único conforto que me resta. O mais constante. E mais desejado. Acolhedor como nenhum outro.
E quando os primeiros raios da manhã tingirem o céu e a Noite se afastar para repousar, poderei, enfim, morrer como quem dorme.



terça-feira, 9 de abril de 2013

Filha da Lua

Ao Jesus Carlos,
que sabe ver o que mais ninguém vê

(Da série Rite of Passage) Night Light, © Tom Chambers, 2006


 
Movia-se sem qualquer ruído, una com a floresta que em torno dela se erguia e na qual se embrenhava cada vez mais. Sob a luz da lua, coada pelas copas das árvores, era não mais que um vulto, um manto longo, arrastando-se sobre a folhagem que cobria a terra. Havia nela algo de grandioso e nobre como um andar altivo e forte capaz de prender o olhar de qualquer um. Sob os seus pés nus nem os galhos que forravam o chão se quebravam... Sabia que, desse modo, a natureza lhe prestava a sua homenagem e se despedia. Em silêncio. Porque é assim que a terra faz o seu luto.
As palavras dele ecoavam-lhe na mente:
_ Ver-te-ei arder na fogueira e hei-de estar lá... a aplaudir!
Sabia que ele tinha razão. Por muito menos, quantas mulheres tinham já sido queimadas. Sem nada saberem. Nada fazerem. E, para ela, que tudo sabia e tudo fazia, a fogueira era o destino mais seguro.
No entanto, tudo poderia ser mais simples. Muito mais simples. Ele, poderoso e soberano, queria um herdeiro. E ela, bela e sábia, era naturalmente a escolhida para lho dar. Mas atrevera-se a recusar-lho, a ele, que nunca ouvia um “não”.
Aquela palavra, impronunciável, fora dita e o seu destino automaticamente traçado. Mas não se arrependia. Não. Nunca. Ela nunca se arrependia de nada.
Tinha ainda tempo para se despedir e isso bastava.
Abeirou-se do lago, no centro da floresta e despiu as longas vestes carmesim, não tão aveludadas como a pele que cobriam.
Era, toda ela um hino. De cabelos cor de fogo, refulgentes e longos, como uma cascata de labaredas desfiada ao longo da curva das costas e deslizando sobre uns olhos de cor indefinida, líquidos como a água daquele lago que contemplava. Olhos espelhados, capazes de tudo reflectir –e, por isso mesmo, de todos envergonhar-. A pele era leitosa, da cor da lua num corpo de seios macios e curvas definidas, um hino à fecundidade, não tivesse ela querido transformar-se em terra árida e intocada.
Ali se aninhou, à beira-água, como um feto no útero materno, de volta à terra que a havia gerado, àquela carne escura e pulsante que lhe dera a vida e a quem ela daria a sua.
Havia de sonhar com fogueiras... Com aquela imensa labareda que, sabia, duraria sete dias e sete noites, a crepitar incessantemente enegrecendo os céus e enlouquecendo os homens. Fogueira que ela haveria de contemplar de cima... uns bons metros acima porque o espírito, esse, era uma ave e havia de guardar aquela floresta para sempre...


quinta-feira, 4 de abril de 2013

Da Sabedoria


Cutting a Sunbeam, © Adam Diston, 1886 




Olhas-me sobranceiro, numa altivez feita de orgulho e presunção, instalado na tua sabedoria como um trono e dizes conhecer tudo, até os mais obscuros segredos do mundo. Gabas-te de conhecer o pensamento de todos os filósofos, de ter penetrado nos meandros mais intrincados da psicologia e abarcar como ninguém a grandiosidade do cérebro humano; congratulas-te por compreender as mais elaboradas leis da física e descrever os mais complexos mecanismos biológicos que regulam os organismos; regozijas-te, por fim, com a certeza de que ninguém como tu é capaz de citar com tamanha precisão autores famosos ou identificar, num único relance o pai de qualquer uma das obras de arte que povoam os nossos museus.
Eu, porém, digo-te que nada te valem esses saberes que tanto te esforçaste por acumular e que antes te queria ver sábio como aquele menino pobre e sujo que saltita descalço nas poças de água lamacentas que os rigores do inverno fizeram nascer nas vielas onde ainda não chegou o alcatrão. Pudesses tu, como ele, ter prestado atenção às canções que o vento nos traz e que povoam o silêncio, ou mergulhado as mãos nas águas límpidas e frescas de uma ribeira, seguindo o seu rasto atribulado ate ao berço de rocha nua onde nasceu; tivesses tu, como ele, a capacidade de conhecer um coração bondoso ou descobrir uma alma pura no brilho de um sorriso...


quarta-feira, 3 de abril de 2013

Miragem


Explanations,© BubaSheva, sem data



_ A vida, sabes, é um deserto.
_ Talvez; mas há sempre oásis…
_ Oásis?!... Não; há miragens.