sexta-feira, 12 de julho de 2013

De Mãos Vazias

Ao Guilherme Lima, 
por um tempo irrepetível. e inesquecível.

BrainStorm nest, © Ruela, 2013




É tarde e estou cansado. Acabei de chegar a casa depois de mais uma noite de amigos e copos. Devia sentir-me mais leve; não é isso que dizem do álcool, como das outras drogas? Que nos inebriam e fazem deixar de pensar? Antes fosse… A mim, há muito já que tais subterfúgios, formas milenares de escapar à dura realidade, deixaram de funcionar. Sempre pensei demais. Talvez seja esse o meu maior defeito. Verdade seja dita, creio que era também o teu maior defeito. “Mais razão que coração”, não era? Sempre fomos assim… Julgo até que foi por isso que consegui amar-te, por me ver reflectido no brilho resoluto e até frio que o negro dos teus olhos assumia de quando em vez. Hoje sei que era verdade quando dizias que tinhas neles um abismo e, por isso, raramente encaravas as pessoas de frente. Só não sei se o descobri tarde demais.
Devia ir dormir, eu sei. O avançar das horas e os muitos gramas de álcool por litro de sangue devem estar a começar a fazer efeito. Sinto que já não penso com clareza. Ou, pelo menos, com a clareza que me seria necessária para te escrever. Mas, com o passar dos anos, a tua ausência foi-me pesando mais e ganhei este hábito de te rabiscar umas linhas. Sempre foste uma boa ouvinte e, de certo modo, sei que me ouves ainda, apesar destas palavras, como todas as outras que escrevi antes delas, nunca chegarem às tuas mãos. Normalmente, digo a mim mesmo que é por isso que te escrevo. É a minha forma de negar que sinto a tua falta. Mas sinto. É por isso que não me vou deitar. Olhei a cama de soslaio mas sinto falta de adivinhar nela a voluptuosidade morna das tuas formas. Já lá vai tanto tempo… Tanto tempo… Nos anos que passaram desde que deixaste de te aninhar ali, como um gato, já tive um sem-número de mulheres. Perdi-lhes a conta, até. Nunca nenhuma me disse nada. Como acho que nada disse a qualquer delas. Mas sabes? Em todo este tempo, nunca ninguém ocupou o teu lugar ali. Desde que partiste aquela cama é de um só. Minha. Ou ainda nossa, porque às vezes chego a sentir-te comigo.
Se calhar estou a enlouquecer, não sei. Sempre fomos propensos a devaneios e loucuras. Acho que a idade veio acentuar isso.
É… a idade.
Não vais acreditar mas só hoje me apercebi que estou a envelhecer. O espelho tem-me enganado bem: os cabelos mantêm-se negros e não adivinho rugas no meu rosto, como sei que ainda as não tens no teu. E no entanto, hoje olhei para as minhas mãos e vi-as velhas. Enrugadas e enegrecidas. Já não tenho mais os dedos longos que gostavas de elogiar. Mãos de pianista, dizias…
Gostava de saber o que dirias se as visses agora.
A verdade é que desde que te foste elas nunca mais tiveram descanso. Pode parecer ridículo mas se me perguntasses o que senti quando te foste embora, ficarias surpreendida. Não me doeu o peito, não me pesaram os dias, nem a minha cabeça se tornou mais confusa ou perdida do que já era habitualmente. Não. O que senti foi, apenas e só, um insuportável vazio nas minhas mãos. Nada mais. Sei que isto não é, provavelmente, o que qualquer mulher esperaria ouvir, nem mesmo tu, sempre tão diferente de todas as outras mulheres. Não é. Mas é a verdade. Cada vez que olhava as minhas mãos desertas sabia que nunca mais as poderia aquecer no teu corpo nem afundar no emaranhado revolto e macio dos teus cabelos. Então comecei a ocupá-las. Sempre. Dos cigarros passava aos copos de whisky e dos bordos dos copos aos lábios de outras mulheres e, desses corpos anónimos e desconhecidos, voltava ao papel e à esferográfica com que te escrevo quase diariamente. Tudo para nunca as ter desocupadas. Mas elas continuam frias, apesar de todo o meu empenho. Geladas. Desde o dia que te foste embora. Às vezes sinto que esse gelo se está a apoderar da minha alma e é isso que dói.
Hoje tomei uma resolução. Acho que encontrei um jeito destas mãos vazias não me atormentarem mais. Lembras-te da arma que guardava na mesinha de cabeceira, mesmo ao lado da cama, embrulhada num lenço de veludo?! Aquela que, para teu tormento, eu gostava de afagar como se fosse um animalzinho de estimação? Acho que é tempo destas mãos tomarem o peso daquela coronha. Uma última vez. Sei que ela é ainda mais gelada do que eu, e assim, posso ir embora com uma sensação morna e doce, como quando afagava a cascata dos teus caracóis. Acho que é disso que sinto mais falta, acreditas?


Quando vieres, porque sei que virás, traz-me uma braçada de rosas brancas, trazes?
Sempre foram as minhas preferidas; tenho a certeza que ainda te lembras…





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