terça-feira, 22 de outubro de 2013

Da Solidão em todos os lugares

I. Dublin


Sem título© Isabel Vicente, 2013



Mais uma cidade. Três noites e um horizonte largo, desconhecido, debruçado à beira-água num sorriso púrpura de amante apaixonado... Estou só, como sempre. E nesta solidão, como nunca, tudo é imensamente mais triste e insuportavelmente mais belo. Assim mesmo.



segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Como uma Casa

À Biazinha,
que merecia um "conto" bem mais luminoso 
do que aquilo que sou capaz de oferecer.

The Mission© Ruela, 2012 



Ninguém sabia ao certo de onde viera ou porque permanecia fechada em casa há décadas, sentada na mesma cadeira de baloiço, única mobília de uma sala com todas as paredes forradas a livros, embalando-se numa cadência lenta e silenciosa sobre o chão coberto de tapetes. Tudo quanto sabiam era que era velha, tremenda e imensamente velha. Tão velha que até os mais velhos da aldeia se lembravam de, enquanto crianças, se terem sentado à sua volta, sobre os tapetes fofos como gatos, ouvindo-a falar da vida e do mundo. Não que ela tivesse viajado muito (nunca ninguém a vira dar dois passos sequer na segurança do pequeno terreno que rodeava a casa, no centro da aldeia); nem precisava. Ela tinha lido todos os livros do mundo: conhecia todas as palavras, sabia todos os segredos, explicava todos os enigmas. Não havia pergunta para a qual não tivesse resposta. Ela tinha, afinal, todas as respostas do mundo. Ninguém, nunca, duvidara disso. Ninguém, nunca, lhe pusera uma questão à qual ela não conseguisse responder com a segurança de um sorriso e aquela deliciosa e infindável paciência das avós. Talvez por isso, todos a tratavam como tal, embora nenhum parente lhe fosse conhecido. Na sua cadeira de baloiço, sobre os tapetes macios de gatos, ela era a imagem da experiência e da sabedoria, aquela diante da qual todas as perguntas encontravam respostas. Alguém assim era, mais do que uma inspiração, uma bênção.
Ela, no entanto, sabia que havia uma pergunta para a qual não teria resposta, uma palavra capaz de fazer abalar (ou ruir) a sua estrutura e tornar inúteis todos os seus conhecimentos. A cada novo grupo de garotos aninhados aos seus pés, a cada nova geração que ali se sentava em busca de respostas, os seus olhos perscrutavam, atentos, tentando adivinhar qual seria o miúdo de carita redonda e olhos curiosos, a questioná-la sobre aquilo; tentava adivinhar de que boca sairia a pergunta que iria ficar sem resposta. Esta expectativa começara por ser uma angústia mas, à medida que os anos foram passando, ela acabara por se convencer que ninguém lhe iria colocar aquela questão. Talvez, afinal, essa resposta fosse conhecida de todos. Esse pensamento acalmou-a e permitiu-lhe manter-se anos e anos baloiçando-se indolente por entre os seus livros.
Até ao dia em que uma miúda entrou de rompante pela sala, ofegante, consequência de uma correria louca e estacou à frente dela, os longos cabelos atirados para trás, deixando realçar uns olhos de brilho invulgar. Foi então que ela soube que tinha chegado o momento.
_ O que é o amor?
Engoliu em seco e a voz saiu-lhe mais débil do que o normal:
_ Não sei, minha filha.
Após um momento de silêncio, um momento de choque, a miúda recuperou as forças e gritou misto de revolta e angústia:
_ Tem de saber! Tem de saber! Toda a gente fala dele! É impossível que não o conheça! Está em todos os livros do mundo!
Ao ouvir estas palavras, ela sentiu-se fraca. E cansada. Naquele instante os seus olhos perderam o brilho e a pele encarquilhada perdeu toda a frescura que ainda parecia conservar. Quando por fim respondeu, parecia ter envelhecido um século:
_ Não minha filha; eu só conheço o medo.



sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Moldura de Sonhos


Ao Ruela,
que cria imagens onde antes existiam apenas palavras.

Teardrop, © Ruela, 2009




A minha janela. Durante anos convenci-me que não havia, no mundo, outra que se lhe comparasse; na minha janela havia qualquer coisa de mágico como se, através dela, lá do alto, eu pudesse ver mundos aos quais ninguém mais tinha acesso por não haver outro miradouro como o meu. Por isso, sempre que podia, deixava cair a noite e subia subrepticiamente ao parapeito, onde me deixava ficar sentada horas e horas, olhando os céus. Conhecia cada estrela, cada fase lunar, cada luz pisqueirinha de um qualquer avião que se atrevesse a cruzar o manto da noite... e sonhava... sonhava muito. Acho que sempre foi esse um dos meus problemas: sonhar demais. E, quando se delira tanto, a realidade tem um gosto amargo, por ficar aquém da ilusão. Não foi, como é natural, difícil aperceber-me disso; até uma miúda tonta que julga ter uma janela mágica consegue descer à terra volta e meia, e encarar a realidade. Por isso, à medida que os anos foram passando, eram cada vez menos as vezes em que me sentava naquela moldura de madeira com as pernas a balançar perigosamente do lado de fora da casa. Não sei bem quando o deixei de fazer mas, olhando para trás, parece-me ter sido há uma eternidade; a mesma eternidade que passou desde que decidi deixar de sonhar; aquela eternidade que se arrasta desde que deixei de ser a catraia tonta que acreditava ter uma janela mágica...
Ainda assim, há dias em que tenho saudades daqueles pilares que emolduravam os meus sonhos, e por vezes, volto a aproximar-me da minha parede de vidros e a fitar a imensidão do horizonte. Mas faço-o apenas em dias como o de hoje, em que os céus estão cinzentos e tristes, tão tristes que as lágrimas que choram escorrem pela superfície lisa e fria da minha janela. Creio que me aproximo apenas nestes momentos por ser mais difícil sonhar num dia assim. Hoje, no entanto, quando comecei a sentir a chuva que escorria pelos vidros toldar-me o olhar, vi-te lá ao fundo, lá longe na rua, para onde a minha atenção nunca é desviada. E acenaste-me, mesmo daquela lonjura. Um aceno que era, todo ele um sorriso, como um convite para dançar. E eu, nem sei bem como, sorri-te de volta e, sem pensar duas vezes, virei costas à janela e desci as escadas a correr, pronta a ir ter contigo. Não olhei para trás, sabes? Mas tenho a certeza que, nas pequeninas bolas de cristal que pejavam os vidros da minha janela mágica, se podia ver uma miudita de cabelos negros empoleirada no mais improvável dos locais.