domingo, 21 de abril de 2013

Nocturno

À minha irmã

Sem título, © Vitor Vicente, 2013



Lá fora a Noite cai e estende o seu manto negro pelo céu, salpicado aqui e além por uma ou outra estrela, como diamantes atirados sobre uma colcha de veludo antigo. Só agora tenho vontade de sair.
A porta do guarda-fatos parece dar directamente para um abismo. Tudo negro. Tão negro como o céu que me chama através da vidraça. Deslizo as mãos por entre estas peças e fecho os olhos à espera de sentir, de todas elas, a que tem o toque mais macio. Quando por fim a encontro, tiro-a, sorrio-lhe e visto-a. É invariavelmente longa, como todas as outras e, como todas elas, parece saída de um qualquer guarda-roupas rico, de há uns poucos séculos atrás. Démodé, é um facto. Mas linda; um dos poucos gostos que me permito e talvez a maior extravagância que me define. Visto-me assim, com rendas e veludos, sedas e cetins, como se a vida fosse uma festa. Ou uma farsa. Um filme de quinta onde não passo de uma figurante, com os meus vestidos compridos e maquilhagem exagerada. Medíocre.
Paro ainda em frente ao espelho tentando, com lápis e sombras, esconder os traços de menina deste rosto que há muito deveria ser de mulher. Poucos castigos há como este de ver reflectida o mesmíssimo rosto de há tantos anos atrás; o rosto de uma criança que não existe mais, como um sinal eterno de meninice quando, da infância que passou, tudo perdi. Até os sonhos.
Desço sem pressas porque sei que, no fundo das escadas, ninguém me espera. Nem lá fora, na Noite fria. Há muito que não há ninguém há minha espera porque há muito me recusei aos pequenos prazeres que uma tal presença me poderia oferecer. Por isso não há braços fortes e quentes onde me possa aninhar, nem tenho um lugar ao qual possa chamar lar. Sempre foi assim: estrangeira em qualquer país e deslocada na minha própria casa, mera hóspede da própria vida. Mas ainda há sorrisos; momentos bons apesar de tudo. Há as horas de conversa fiada com os amigos, o sorriso doce da minha irmã, o ursinho de peluche onde aninho a cabeça todas as noites, uma estante carregada de livros poeirentos à espera de alguém que os olhe e cuide, uma caneca de chá quente numa destas manhãs cinzentas do Porto em boa companhia, o calor de um gato aninhado no meu regaço, o cheiro doce de canela do incenso que reina no meu quarto ou aquele rafeiro que passa por mim todas as manhãs e me faz uma festa enorme como se há anos me conhecesse. Há tudo isso, os prazeres banais a que me permito ainda. Mas nada mais que isso. Sempre fui organizada e não quero deixar atrás de mim um rasto de distúrbios ou tristeza, como fazem as tempestades. Os hóspedes são assim: nunca se sabem se a estadia será tão prolongada quanto desejariam. Quanto a mim, não sei quando terei de entregar as chaves e sei que, assim, não farei estragos. Mais estragos.
Mas agora nada disso importa… Importa apenas o abraço gélido da Noite, único conforto que me resta. O mais constante. E mais desejado. Acolhedor como nenhum outro.
E quando os primeiros raios da manhã tingirem o céu e a Noite se afastar para repousar, poderei, enfim, morrer como quem dorme.



terça-feira, 9 de abril de 2013

Filha da Lua

Ao Jesus Carlos,
que sabe ver o que mais ninguém vê

(Da série Rite of Passage) Night Light, © Tom Chambers, 2006


 
Movia-se sem qualquer ruído, una com a floresta que em torno dela se erguia e na qual se embrenhava cada vez mais. Sob a luz da lua, coada pelas copas das árvores, era não mais que um vulto, um manto longo, arrastando-se sobre a folhagem que cobria a terra. Havia nela algo de grandioso e nobre como um andar altivo e forte capaz de prender o olhar de qualquer um. Sob os seus pés nus nem os galhos que forravam o chão se quebravam... Sabia que, desse modo, a natureza lhe prestava a sua homenagem e se despedia. Em silêncio. Porque é assim que a terra faz o seu luto.
As palavras dele ecoavam-lhe na mente:
_ Ver-te-ei arder na fogueira e hei-de estar lá... a aplaudir!
Sabia que ele tinha razão. Por muito menos, quantas mulheres tinham já sido queimadas. Sem nada saberem. Nada fazerem. E, para ela, que tudo sabia e tudo fazia, a fogueira era o destino mais seguro.
No entanto, tudo poderia ser mais simples. Muito mais simples. Ele, poderoso e soberano, queria um herdeiro. E ela, bela e sábia, era naturalmente a escolhida para lho dar. Mas atrevera-se a recusar-lho, a ele, que nunca ouvia um “não”.
Aquela palavra, impronunciável, fora dita e o seu destino automaticamente traçado. Mas não se arrependia. Não. Nunca. Ela nunca se arrependia de nada.
Tinha ainda tempo para se despedir e isso bastava.
Abeirou-se do lago, no centro da floresta e despiu as longas vestes carmesim, não tão aveludadas como a pele que cobriam.
Era, toda ela um hino. De cabelos cor de fogo, refulgentes e longos, como uma cascata de labaredas desfiada ao longo da curva das costas e deslizando sobre uns olhos de cor indefinida, líquidos como a água daquele lago que contemplava. Olhos espelhados, capazes de tudo reflectir –e, por isso mesmo, de todos envergonhar-. A pele era leitosa, da cor da lua num corpo de seios macios e curvas definidas, um hino à fecundidade, não tivesse ela querido transformar-se em terra árida e intocada.
Ali se aninhou, à beira-água, como um feto no útero materno, de volta à terra que a havia gerado, àquela carne escura e pulsante que lhe dera a vida e a quem ela daria a sua.
Havia de sonhar com fogueiras... Com aquela imensa labareda que, sabia, duraria sete dias e sete noites, a crepitar incessantemente enegrecendo os céus e enlouquecendo os homens. Fogueira que ela haveria de contemplar de cima... uns bons metros acima porque o espírito, esse, era uma ave e havia de guardar aquela floresta para sempre...


quinta-feira, 4 de abril de 2013

Da Sabedoria


Cutting a Sunbeam, © Adam Diston, 1886 




Olhas-me sobranceiro, numa altivez feita de orgulho e presunção, instalado na tua sabedoria como um trono e dizes conhecer tudo, até os mais obscuros segredos do mundo. Gabas-te de conhecer o pensamento de todos os filósofos, de ter penetrado nos meandros mais intrincados da psicologia e abarcar como ninguém a grandiosidade do cérebro humano; congratulas-te por compreender as mais elaboradas leis da física e descrever os mais complexos mecanismos biológicos que regulam os organismos; regozijas-te, por fim, com a certeza de que ninguém como tu é capaz de citar com tamanha precisão autores famosos ou identificar, num único relance o pai de qualquer uma das obras de arte que povoam os nossos museus.
Eu, porém, digo-te que nada te valem esses saberes que tanto te esforçaste por acumular e que antes te queria ver sábio como aquele menino pobre e sujo que saltita descalço nas poças de água lamacentas que os rigores do inverno fizeram nascer nas vielas onde ainda não chegou o alcatrão. Pudesses tu, como ele, ter prestado atenção às canções que o vento nos traz e que povoam o silêncio, ou mergulhado as mãos nas águas límpidas e frescas de uma ribeira, seguindo o seu rasto atribulado ate ao berço de rocha nua onde nasceu; tivesses tu, como ele, a capacidade de conhecer um coração bondoso ou descobrir uma alma pura no brilho de um sorriso...


quarta-feira, 3 de abril de 2013

Miragem


Explanations,© BubaSheva, sem data



_ A vida, sabes, é um deserto.
_ Talvez; mas há sempre oásis…
_ Oásis?!... Não; há miragens.