quinta-feira, 2 de maio de 2013

"Imitation is the sincerest form of flattery."
(Charles Caleb Colton)


Shopper, © Saul Leiter, 1953




Desde que tenho memória de mim, sou a criança no escuro fascinada por uma luz ao longe, a minha solidão nasceu comigo, descerrei da treva os olhos para vaguear altas horas num labirinto de ruas caladas, há sempre uma janela iluminada, fico quieta a ser uma sombra e sonho, parecem-me sempre felizes os mundos por trás de janelas acesas na noite. Isto deve ser uma tara qualquer, dessas que levam as mulheres a abanar a cabeça tristemente e murmurar em surdina “coitadinha” com ar de quem diz “tão nova e já tolinha”, sem saber que isto não é loucura, é outra coisa, sem nome, que atormenta quem nunca soube crescer por não ter podido ser menina. Depois vive-se assim, a enganar o tempo, que passa para os outros mas não para nós; cresce-se a engolir a raiva, a engolir a raiva com lágrimas; guarda-se o sofrimento como uma pedra na boca e o amor como uma pedra na mão. Percebe-se que o nosso lugar e o escuro e o silêncio, que aí estamos protegidos porque são os dois grandes temores da Humanidade e sentamo-nos sobre o fogo e o gelo; nada mais resta do que ser uma criança valente, e esperamos... “Um dia eles ainda hão de ter orgulho em mim”. Enquanto eles passam lá fora, reflexos distorcidos pelo vidro da janela, levando um cachopo loirinho, tão lindo, pela mão. Depois percebe-se que não há orgulho capaz de conquistar um amor que nunca existiu, que sorrisos são máscaras forjadas e abraços protocolos circunstanciais, descobre-se que se nasceu estrangeiro e não há no mundo lugar para gente como nós. Então viaja-se, foge-se, procura-se conforto na certeza dos lugares que, não sendo nossos, não poderíamos sentir como lar já que, aquele que o deveria ser nunca o foi. E os sorrisos, aqueles sorrisos de cera, perdem-se na distância de um telefonema roufenho e sem sentido, de quem nunca teve o que dizer.
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O rapaz do bar é-me desconhecido. Como todos os que o rodeiam. E todos os que me rodeiam. Ou a língua que falam entre si. Tudo é novo, e estranho, e distante. E há um certo aconchego nisto, nesta ausência total de referências e conhecimentos. Aqui ao menos, como noutro qualquer bar perdido na noite em que nunca entrei, ou num outro país de língua enrolada que nunca ouvi, posso sentir-me estrangeira à vontade; aqui, ao menos, esta sensação é-me legítima. Nesta terra, mais do que em qualquer outro lugar, está-me estampada no rosto moreno e no negrume dos cabelos esta condição de estrangeira, como um vento quente trazido do deserto, que fustiga os olhos dos incautos como este o rapaz que, solícito, se abeirou do balcão para me atender. Não veio por simpatia mas por curiosidade, instinto de macho que adivinha na curva generosa das minhas ancas uma quentura que não há por estas paragens, um ninho onde poderia abrigar-se por instantes para fugir do frio que por cá reina, como uma lareira aconchegante na noite escura. E ronda-me, à espera de desvendar o segredo que trago por detrás dos olhos fundos, mais negros do que a noite escura que se estende lá fora, tão negros como ele nunca sonhou existirem, habituado como está às águas calmas e translúcidas que estas mulheres trazem no olhar, como uma promessa de céu. É belo, uma ode viva à juventude e à força e quando me olha desafia-me insinuante, não é um olhar de pedidos mas de promessas, de quem sabe que me daria prazer, assim eu quisesse, como qualquer outra mulher. O que ele não sabe é que o fogo que me anima as ancas não lhe trespassaria apenas o corpo – mas que seria chama capaz de lhe consumir a alma num tormento. Não deixo gorjeta, não me despeço, sequer sorrio. Levanto a gola negra do casaco comprido e saio.
Merda de cidade, tão fria. Eu não estou aqui.



*Inspirado noutra página, de um outro moleskine