sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Dos Abismos

I. O menino e o cão

Ao Vitor Vicente,
no dia do seu aniversário
(From The Disasters of War series) Untitled © Gottfried Helnwein, 2007 




Só D*us sabe de onde viera e a que mortais demónios devia as cicatrizes que lhe deformavam o corpo. Isolara-se ali por vontade própria, longe de tudo e de todos; das ameaças como da segurança; das sombras temíveis como do conforto dos rostos conhecidos. Ali, naquela ruína escavada na terra, vivia só, empoleirado na certeza de nada temer como num trono, sem mais a que se agarrar para além da glória de não depender nem precisar de ninguém. Pouco passava dum menino mas, se alguém houvesse capaz de se embrenhar naquela escuridão para o procurar, não encontraria, naquele rosto, qualquer sinal da inocente frescura da infância; apenas um olhar feroz e gélido, de desafio mais que de força.
Mas, se gente não houve capaz de descer àquele abismo, outro percorreu léguas até ali chegar, molhado e frio, numa magreza extrema de quem tinha deixado as forças pelo caminho: o cão. Não era um cão qualquer, claro. Tinha sido, há tanto tempo atrás que parecia noutra vida, o cão daquele menino; companheiro de brincadeiras e gargalhadas. Hoje, porém, não era mais que uma sombra mirrada do cachorro feliz que o acompanhara um dia. Doente e desnutrido, era uma triste visão, suplantada unicamente pela visão triste daquele miúdo feito pedra. Por isso, ao vê-lo ali, bateu-lhe. Bateu-lhe uma, outra e outra vez. Bateu-lhe e enxotou-o; e atirou-lhe pedras; e chamou-lhe nomes. E voltou a bater-lhe; a enxotá-lo; a atirar-lhe pedras; e a chamar-lhe nomes ao ver que, apesar das patadas, o cachorro sempre voltava, na vã tentativa de se aninhar junto aos seus pés, àqueles mesmos pés que, pouco antes, uma vez após outra, o haviam torturado.
Lá fora, os dias fizeram-se noites, e as noites deram lugar a novos dias; rodaram as luas; mudaram as estações. E o miúdo cansou-se a bater-lhe, a enxotá-lo, a atirar-lhe pedras e a destratá-lo. Até ao dia em que, de tão cansado, adormeceu. E, quando acordou, estava quente, estranha e reconfortantemente quente, apesar do vento que se ouvia lá fora e da humidade de sempre entranhada naquelas paredes. Era o animal. O maldito cachorro aproveitara a distracção do dono para junto a ele se aninhar e adormecer. Naquele dia, bateu-lhe ainda mais do que o costume; mais do que alguma vez fizera e, por fim, viu que, entre ganidos, o animal partia a coxear, como uma imagem da tristeza infinita.
Passou-se esse dia, e o seguinte, e mais outro, e outro mais. Agora está só. Tudo em redor é negrume. E o menino ri-se naquela solidão; ri-se na certeza de que o cachorro aprendeu finalmente a lição e partiu, cansado de levar pancada; no júbilo cruel de quem sabia, de antemão, já não haver bondade no mundo. Sem saber que o animal nunca chegou sequer a afastar-se; jaz ,lá fora, na poça negra do seu próprio sangue.