quinta-feira, 28 de março de 2013

Relógio Antigo

(From The Birthday Party series) Untitled, © Vee Speers, 2007



Ela era velha e tinha, contra si, o tiquetaque zombeteiro de todos os relógios, engrenagens diabólicas que desfiam os dias. Por isso, quando chegava ao café e se sentava na mesa-de-sempre para pedir o galão-de-sempre, era com uma mistura de estranheza e galhofa que os outros a viam tirar de dentro da mala uma série de peluches que sentava em cima da mesa e para os quais falava. Os putos riam-se, os homens encolhiam os ombros, e as mulheres suspiravam suspiros daqueles que, sem dizer nada, dizem muito. Mas ela não ligava; encolhia os ombros e dizia para aquela insólita plateia de pelúcia: “deixem lá; eles não entendem…”
Eu era nova e tinha, a meu favor, a irreverência da juventude que parecia tornar aceitável aquele meu jeito de vaguear sozinha ou de me sentar nas mesas dos cafés com o mp3 sempre ligado e os phones nos ouvidos, numa total (?) indiferença à vida que me rodeava. Era. Mas à noite, quando as luzes se acendiam tímidas e a cidade adormecia, também eu pousava a cabeça no aconchego reconfortante da barriga de algodão espalmada do meu ursinho e dizia em surdina: “eles não entendem; ninguém entende…”




segunda-feira, 25 de março de 2013

Natureza(s) Morta(s)

Remembrance © Zhang Jingna, 2009



I.
A imensidão do jardim de pedra. imponente. imutável. interminável. Na largueza calcetada e aprumada do jardim de pedra o tempo há muito deixou de passar. aqui todos os dias podem ser iguais a esta hora de sol em que a claridade morna se espalha pelas superfícies de mármore polido e nos entra nos olhos cansados. branca. quente. intensa. É na quieta melancolia deste jardim de pedra que repousam aqueles para os quais já deixou de haver futuro. e é por isso que, aqui, nesta cidade esquecida dentro da outra cidade, o tempo deixou há muito de passar. Os barulhos da metrópole – buzinas. carros. pregões – não chegam a este lugar. esbarram na muralha invisível e serena da eternidade que o rodeia e afasta do mundo. E é por isso que vimos. é por isso que vimos sempre. uma e outra vez, mesmo depois de todas as promessas. porque aqui há a paz que a cidade lá fora sempre nos negou. Aqui há sentimentos talhados na pedra. há dor. e saudade. e fé. há rochas que ganharam forma de gente. e nome de gente. que choram como, um dia, já chorou gente. E há os gatos. gatos de todos os tamanhos. de todas as cores. de todos os feitios. gatos preguiçosos estendidos sob o morno sol de março. parados. pachorrentos. sempre altivos. gatos que se afastam ligeiros quando se aproximam os nossos passos. quando sentem os nossos pés. E, depois há este degrau de pedra. granítico. morno. polido pelos anos. E os nossos corpos próximos, esquecidos de tudo. do tempo. da vida. talvez até um do outro. E há a minha cabeça pousada no teu ombro. criança cansada de brincar. quieta. sonolenta. e triste. sempre triste. Há os meus olhos fechados e o sol que me escorre pelas pálpebras numa doçura dourada de mel. Neste refúgio de pedra, por um instante, tudo parece ter desaparecido: a imensidão do jardim de pedra - imponente. imutável. interminável – e as imagens de pedra –feitas de dor. de saudade. de fé- e a preguiça dos gatos sob o sol de inverno – parados. pachorrentos. sempre altivos - e até a dureza deste degrau onde esquecemos os corpos - granítico. morno. polido pelos anos - . Ficou só o silêncio. inteiro. imenso. maior do que o tempo e do que nós. E há as nossas vozes. as nossas vozes -baixas, ténues, arrastadas- a não serem mais que o silêncio. E há o meu canto. o meu canto – murmúrio hesitante. e triste. sempre triste. - a mais não ser do que o silêncio. E depois… depois, há os meus dedos –pequenos. trémulos. tímidos.- aninhados no refúgio quente da tua mão. os meus dedos a serem mais, muito mais do que este silêncio - inteiro. imenso. maior do que o tempo e do que nós-. a serem o segredo que trago guardado no peito. a serem o abraço que trago aferrolhado nestes braços inertes. como mortos.

II.
A quietude acolhedora do jardim na primavera. fresco. verde. e belo, tão belo. Perdidos na frondosa solidão daquele verde líquido, podíamos quase acreditar que era nosso, todo o jardim. Que era nossa a estação inteira que se adivinhava, anunciada pela suave fragrância das minúsculas violetas. frágeis. insignificantes. e encantadoras na sua deliciosa pequenez. Que eram nossos os risos que as aves ecoavam em alegres trinados enquanto sobrevoavam os nossos corpos. rápidas. ariscas. cheias de vida. Ou que era da mornidão líquida do nosso olhar que nasciam os lagos pejados de nenúfares. rosados. altivos. e perfeitos, tão perfeitos. Desse jardim, então vestido de festa, conhecia eu todos os recantos. todas as histórias. todos os caminhos. dele, sabia as mais informativas das lições. as mais curiosas das histórias. e as mais secretas das lendas. dele, conhecia todas as flores - frágeis. insignificantes. e encantadoras na sua deliciosa pequenez -, todas as aves - rápidas. ariscas. cheias de vida -, cada um dos milhentos nenúfares - rosados. altivos. e perfeitos, tão perfeitos -. Mas, desde aquela tarde, tudo isso deixou de ter importância. do meu jardim de sonhos, não recordo outros recantos. nem histórias. nem caminhos. dele, guardo apenas a lembrança do teu rosto sob o tecto cúmplice da vegetação. do rosto que adivinhei mesmo tendo fechado por momentos as cortinas dos olhos quando os teus lábios desceram sobre os meus. E sei que o jardim era todo ele primavera naquele final de abril. quase maio. quase luz. quase amor.

III.
As quatro paredes do meu quarto. lisas. frias. impessoais. fronteiras que, como muralhas, ergui entre mim e o mundo. e os outros. e a vida. Nas quatro paredes do meu quarto não há mais que as sombras fugidias desenhadas a medo pela escassa luz das velas. as sombras e a estante. a estante dos meus livros como um baú de sonhos. ordenada. metódica e patologicamente ordenada. os livros dispostos por tamanhos. por autores. por temáticas. os livros e a máscara. a máscara de penas. adornada. rica. e deslocada. ali colocada por pirraça. por piada. por necessidade. por precisar de um símbolo visível desta a farsa em que tranformei a vida. E, no meio das paredes do meu quarto - lisas. frias. impessoais - a cama. pequena. muito pequena. cama de um só num quarto de um só. E, na beira da cama que devia ser de um só - que é de um só - o teu corpo esquecido. o corpo que aprendi a conhecer como se fosse meu. cansado. vergado como se fosse velho. como se tivesse o mundo a pesar-lhe sobre os ombros largos. como se pudesse fechar os olhos e tudo desaparecesse num instante: o meu quarto e as suas paredes - lisas. frias. impessoais – e a estante como uma montra de livros ordenados - por tamanhos. por autores. por temáticas - e a máscara de penas - adornada. rica. e deslocada - e os meus joelhos afundados no colchão atrás de ti. os meus joelhos quase encostados ao fundo das costas. quase meigos. quase ternos. quase capazes de, num toque, te dizerem tudo o que deixei por dizer todo este tempo. quase. quase. nunca mais que isso. E, depois, há os teus cabelos. longos. lisos. escorridos pelas costas vergadas pela vida. ou pelos sonhos que deixaste de perseguir. ou pelas tristezas de que nunca me quiseste falar. E há as minhas mãos. as minhas mãos pequenas. frias. trémulas. tímidas. as mãos que gosto de afundar nos fios dos teus cabelos - longos. lisos. escorridos pelas costas vergadas pela vida -. as mãos com que te penteio lenta e cuidadosamente. as mãos de criança pequena a embelezar a boneca preferida. as mãos de velha que nunca soube crescer e se enterram nos fios dos teus cabelos que me escorrem por entre os dedos e os tentam prender como quem ama um sonho de menina.

IV.
A minha cama. a cama que foi nossa muito antes de ser minha. estreita. singela. quase despida. Nesta cama, agora órfã de ti, espraia-se ainda a brancura lisa dos lençóis. frescos. limpos. alinhados num aprumo triste de sudário. E, no meio da desolação arrumada que aqui se instalou aquando do vazio esmagador da tua ausência, o meu corpo. pequeno. magro. vergado. o meu corpo fraco. o meu corpo, outrora teu, numa tristeza de abandono. esquecido contra o desconforto frio da parede lisa. E, do outro lado do quarto, inútil, a cama – estreita. singela. quase despida - não mais que um traste velho, comido pelo tempo. Na lisura impessoal dos lençóis que agora a cobrem - limpos. alinhados num aprumo triste de sudário - é quase impossível imaginar a mornidão doce dos nossos corpos juntos, ali jogados. brilhantes. trémulos. esquecidos de tudo. e juntos. sempre tão juntos. numa proximidade capaz de desafiar as leis da física. E, no entanto, são os nossos corpos que vejo quando a olho. Os nossos corpos - brilhantes. trémulos. esquecidos de tudo - como quando ainda aqui estavas. enquanto ali estávamos juntos - sempre tão juntos. naquela tal proximidade capaz de desafiar as leis da física - e podia aninhar-me no calor do teu peito e ouvir o bater do teu coração a ecoar-me no corpo quando pousava a cabeça no ninho quente da tua ternura. como quando me olhavas nos olhos e me pedias palavras. respostas. explicações. e eu te dava apenas o negro fundo e líquido do meu olhar e o vazio grande do meu silêncio. Agora, que não estás mais aqui, penso que devia ter-te dado o que querias. que devia ter-te dado palavras. respostas. explicações. devia. devia. devia. Mas, mesmo que o tivesse feito, sabe que nunca poderia ter-te dado mais do que o meu olhar e o meu silêncio. porque, neles - no negro fundo e líquido do meu olhar e no vazio grande do meu silêncio – dei-te, já, tudo o que sou.

V.
O meu rosto. pálido. magro. macilento. o meu rosto triste, tão igual ao que vejo todos os dias reflectido no espelho velho do velho armário de quarto de banho. pequeno. pobre. e ferrugento. o meu rosto tão igual ao resto do corpo. esquelético. trémulo. e fraco. o meu rosto –pálido. magro. macilento- a olhar-me do outro lado daquele vidro que, como a água dos lagos fundos, me devolve a imagem que preferia não ver. a imagem de traços nítidos de um rosto triste, única continuação lógica do meu corpo triste -e esquelético. e trémulo. e fraco -. do meu corpo, como lhe chama a ciência, anémico. deste corpo que a fisiologia espera, em vão, curar. com suplementos. e vitaminas. e ferro. ignorando que, um dia, a imagem do meu rosto reflectido pelo espelho velho do velho armário do quarto de banho – pequeno. e pobre. e ferrugento -, era diferente. e era-o porque, uns quantos centímetros acima do meu rosto magro, estava a imagem do teu. sério. belo. e distante. sempre distante. ignorando, afinal, que não é possível à ciência curar-me - com suplementos. ou vitaminas. ou ferro - porque, o que ela chama anemia, chamo eu saudade. ou solidão. ou melancolia. e, essas, só a imagem do teu rosto – sério. belo. e distante. sempre distante - pode curar. Por isso, encarando uma última vez o reflexo incómodo que o vidro me devolve como por magia, é o teu nome que se desenha na palidez espectral dos meus lábios. baixo. e tímido. como uma prece.



terça-feira, 19 de março de 2013

Relógio de Sol


Fotograma do filme "Die Herrin von Atlantis", G. W. Pabst, 1932



Pobre relógio suíço, de nobres materiais revestido! Gabas, opulento, a tua precisão esquecendo que um só grão de areia na mais insignificante das roldanas que te animam basta para que toda essa exuberante engrenagem se quede inerte, como morta.
Já eu, mero instrumento primitivo, estou só: uma vara de metal única, exposta aos caprichos das estações. Não há, porém, vendaval capaz de me derrubar. E, enquanto houver Sol, aqui estarei, eterno e imutável, marcando a passagem do Tempo.




segunda-feira, 18 de março de 2013

Canto de Chão



Sem título (Júlia na cozinha), © Catarina Botelho, 2007



É um dos poucos recantos em que o jeito são da província ainda subsiste, acantonado num recanto escondido da cidade grande onde, por descuido, ainda não chegou o bulício impessoal da metrópole. Aqui, todos se conhecem pelo nome. As mulheres chegam e são recebidas com um daqueles sorrisos grandes que dizem “bom dia dona fernanda. vai ser o peixinho de sempre?” ou “então dona helena, já está melhorzinha daquela gripe?” Os homens, esses, chegam e fala-se de futebol. Diz-se “então o seu benfica? desta vez é que foi, ah?!”.
Eu, porém, sou apenas a menina: “bom dia menina. então o que vai ser hoje?”. Excepto, claro, quando venho com ele. Nesses dias, passo de menina a jovem. Passamos, aliás. Os dois. Como se fossemos um só: “então jovens, que vão desejar?”. Todos os outros dias, no entanto, sou a menina. A menina que chega e se senta invariavelmente na mesa do canto e, enquanto come, vai rabiscando o papel irregular que resguarda a toalha lisa, cuja cor o tempo e as sucessivas lavagens se encarregaram de tornar indefinida. (“coitadinha, é lunática”; é o que diz a empregada, muito loira, imensa e intoleravelmente loira, farta de carnes e com os lábios muito pintados, muito vermelhos, enquanto me dirige um sorriso quase doce, quase terno, daqueles sorrisos de que só as mães são capazes).
Da minha mesa, daqui do canto, vejo tudo isto. Conheço os rostos de todos os que por aqui param e, de alguns, adivinho até as histórias. Gosto disto. Gosto do barulho das conversas que se sobrepõe à voz da garota que, com uma cançoneta qualquer dessas que fazem as gentes bater o pé a marcar o ritmo, encerra o medonho programa da manhã que o televisor transmite antes de começar o telejornal. Gosto dos quadros, meios tortos, meios toscos, que enfeitam as paredes. Gosto, principalmente, daquela reprodução imperfeita do Charlot com o menino, que enche uma reentrância da parede. Há qualquer coisa de genuíno que se respira por cá e me parece perdido, quase extinto, em todos os lugares. E gosto até da dona da casa, que me sorri sempre que me levanto para pagar a conta, conta que há muito deixei de pedir porque tanto eu como ela a sabemos de cor já que, todos os dias, ao prato, tem apenas de acrescentar a mesma bebida. E o mesmo vício. Hoje, particularmente, acho até que a adoro quando, ao receber, me pergunta com o sorriso complacente de quem justifica as minhas excentricidades: “a menina desculpe perguntar mas… é escritora?” e me ouve responder, com o mesmo sorriso “não, não; sou só lunática, mesmo.”


 

sábado, 16 de março de 2013

Fotografia

Forgotten Fairytales© Zhang Jingna, 2007
Model: Sveta
Photography/Art Direction: Zhang Jingna
 


Ele era especial, disso tinha a certeza. Como tinha a certeza que, tal como ela, tinha chegado àquela casa de horrores pelo próprio pé; que estava ali por vontade própria. Não tinha sido despejado por outros como a velha louca que se baloiçava incessante e eternamente na sua cadeira de baloiço, cantarolando palavras doces num qualquer dialecto desconhecido desde que um familiar mais frio ali a deixara por não ter mais utilidade; ou como aquele homem de rosto cansado e triste que passava os dias a arrancar camadas de tinta da parede com as unhas, encostado a um canto da sala onde um vermelho acastanhado substituía, agora, o branco caiado original, de tanto sangue que ia secando naquelas paredes, deixado pelas suas mãos febris; ou como a mulher bonita que passava as noites em sobressalto, dando voltas doentias na cama e gritando com tal intensidade que quase se podia adivinhar um batalhão inteiro de monstros aguardando a escuridão densa da noite para a atacar; ou como o miúdo de olhos enraivecidos que ocupava dias e dias a desmembrar bonecas intercalando-os com umas tantas noites a apanhar borboletas, que, com um alfinete, prendia ainda vivas à mesa grande de madeira, deleitado com o espectáculo de as ver debaterem-se até à morte; ou como o velho de dentes enegrecidos e dedos longos, amarelos e encarquilhados do cigarro, nas mãos trémulas da idade, que se passeava para trás e para diante nos poucos metros quadrados daquela divisão e recitava poemas horas e horas. Não. Ele era diferente de todos. Era jovem e belo e dificilmente se poderia imaginar porque um homem assim escolheria abrigar-se naquela casa, com aquelas companhias… Provavelmente teria as suas razões -e fortes- do mesmo modo que ela as tivera para, ainda criança, se enfiar naquele buraco. Mas ela nunca se perdera a pensar muito nisso. Como não pensava no porquê de ele ser o único que se atrevia a sair da casa, embora sempre voltasse. Algumas vezes, passavam-se muitas luas antes do seu regresso, outras bastava o sol nascer no horizonte para ele voltar. Ainda assim, de todas elas, o ritual repetia-se. Voltava e enclausurava-se no quarto que, apesar de ninguém assim o ter decidido, era só dele; um quarto que nem precisava de porta para afastar os curiosos; quarto onde só ela –assim que ele saía e sem que ele nunca o soubesse- entrava. Ela ia porque sabia o segredo das horas que ele passava fechado dentro daquelas quatro paredes: ele desenhava. Muito. Enchia as paredes de cima a baixo com todo o tipo de imagens e ela, que não tinha janelas por onde visse o mundo, perdia-se a olhar cada traço, cada figura, sonhando com quimeras que sabia não existirem ou com animais que, em criança, ela própria conhecera. Às vezes, depois das viagens mais longas ele voltava e desenhava monstros, muitos, muitos monstros… E ela achava que esses monstros eram o mundo, o mesmo mundo do qual fugira há tanto tempo atrás. Então, escrevia. Apanhava todos os papéis da casa, aproveitando até as coisas mais ridículas, como embalagens de farinha ou guardanapos e escrevia. Muito. Enchia os papéis de cima abaixo com todo o tipo de textos, todo o tipo de palavras, alegres ou tristes, cruéis como lâminas ou suaves como veludo. Tudo dependia da imagem que as inspirava. Às vezes ele ficava muitos dias sem sair de casa. Passeava-se por lá, por entre os estranhos habitantes daquele buraco e, depois, voltava a fechar-se no quarto. Eram esses os dias mais felizes dela, quando ele finalmente saía do quarto. Era nessa altura que ela sabia, ainda antes de entrar, que encontraria anjos pintados de fresco a ocupar mais um nicho da parede.
Assim se passou muito tempo. Muito, muito tempo. Tempo suficiente para ele encher as quatro paredes do quarto e ela acumular uma montanha de papéis cheios de outras tantas imagens, desenhadas com palavras. Tempo suficiente para as roupas de criança que ela trazia não serem mais capazes de encobrir que se tornara numa mulher. Mesmo assim, deixou-se ficar. Pensava que podia ficar lá para sempre. Até ao dia em que, depois de ele sair, percebeu que já só restava uma nesga de parede por ocupar; um último desenho e ele não teria mais onde colocar as imagens que trazia consigo de cada vez que voltava. E ela não teria mais o que escrever. Foi nessa altura que decidiu partir, antes mesmo de saber o que significariam os últimos traços que ele colocaria ali. Antes de sair e deitar um último olhar por aquelas paredes onde se misturavam anjos e demónios, foi colocar aquele molho improvável de papéis disformes e amassados, onde se adivinhava uma letra miúda e certinha, no chão ao lado do único espaço da parede que ainda restava por preencher. No cimo do monte de papéis, agora toscamente atados numa tentativa vã de fazer um laçarote, alinhavam-se duas linhas apenas, as únicas que lhe deixou antes de partir; as únicas que lhe dirigiu durante todos aqueles anos:

Deste-me as imagens.
Hoje, dou-te eu, as palavras.



sexta-feira, 15 de março de 2013

O poço

Fotograma do filme "Black Swan", Darren Aronofsky, 2010



Olhas-me a medo, como quem contraia uma vertigem, e logo te afastas, incomodado com uma fundura para a qual os teus olhos não conseguem encontrar fim. Ignoras porém, que quando a noite cai e os astros surgem na imensidão, fazem das minhas águas negras e fundas o espelho onde se miram. Então, por umas horas, sou um céu de estrelas.