segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Como uma Casa

À Biazinha,
que merecia um "conto" bem mais luminoso 
do que aquilo que sou capaz de oferecer.

The Mission© Ruela, 2012 



Ninguém sabia ao certo de onde viera ou porque permanecia fechada em casa há décadas, sentada na mesma cadeira de baloiço, única mobília de uma sala com todas as paredes forradas a livros, embalando-se numa cadência lenta e silenciosa sobre o chão coberto de tapetes. Tudo quanto sabiam era que era velha, tremenda e imensamente velha. Tão velha que até os mais velhos da aldeia se lembravam de, enquanto crianças, se terem sentado à sua volta, sobre os tapetes fofos como gatos, ouvindo-a falar da vida e do mundo. Não que ela tivesse viajado muito (nunca ninguém a vira dar dois passos sequer na segurança do pequeno terreno que rodeava a casa, no centro da aldeia); nem precisava. Ela tinha lido todos os livros do mundo: conhecia todas as palavras, sabia todos os segredos, explicava todos os enigmas. Não havia pergunta para a qual não tivesse resposta. Ela tinha, afinal, todas as respostas do mundo. Ninguém, nunca, duvidara disso. Ninguém, nunca, lhe pusera uma questão à qual ela não conseguisse responder com a segurança de um sorriso e aquela deliciosa e infindável paciência das avós. Talvez por isso, todos a tratavam como tal, embora nenhum parente lhe fosse conhecido. Na sua cadeira de baloiço, sobre os tapetes macios de gatos, ela era a imagem da experiência e da sabedoria, aquela diante da qual todas as perguntas encontravam respostas. Alguém assim era, mais do que uma inspiração, uma bênção.
Ela, no entanto, sabia que havia uma pergunta para a qual não teria resposta, uma palavra capaz de fazer abalar (ou ruir) a sua estrutura e tornar inúteis todos os seus conhecimentos. A cada novo grupo de garotos aninhados aos seus pés, a cada nova geração que ali se sentava em busca de respostas, os seus olhos perscrutavam, atentos, tentando adivinhar qual seria o miúdo de carita redonda e olhos curiosos, a questioná-la sobre aquilo; tentava adivinhar de que boca sairia a pergunta que iria ficar sem resposta. Esta expectativa começara por ser uma angústia mas, à medida que os anos foram passando, ela acabara por se convencer que ninguém lhe iria colocar aquela questão. Talvez, afinal, essa resposta fosse conhecida de todos. Esse pensamento acalmou-a e permitiu-lhe manter-se anos e anos baloiçando-se indolente por entre os seus livros.
Até ao dia em que uma miúda entrou de rompante pela sala, ofegante, consequência de uma correria louca e estacou à frente dela, os longos cabelos atirados para trás, deixando realçar uns olhos de brilho invulgar. Foi então que ela soube que tinha chegado o momento.
_ O que é o amor?
Engoliu em seco e a voz saiu-lhe mais débil do que o normal:
_ Não sei, minha filha.
Após um momento de silêncio, um momento de choque, a miúda recuperou as forças e gritou misto de revolta e angústia:
_ Tem de saber! Tem de saber! Toda a gente fala dele! É impossível que não o conheça! Está em todos os livros do mundo!
Ao ouvir estas palavras, ela sentiu-se fraca. E cansada. Naquele instante os seus olhos perderam o brilho e a pele encarquilhada perdeu toda a frescura que ainda parecia conservar. Quando por fim respondeu, parecia ter envelhecido um século:
_ Não minha filha; eu só conheço o medo.



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