(From the Nostalgias series)
Untitled © Ana Priscila Rodriguez, 2008
Estendida na cama depois de mais um dia
como todos os outros, abandono o corpo a uma lassidão sonolenta, baixo
lentamente as pálpebras como cortinas sobre os meus olhos negros e deixo-me
ficar. Quieta. À excepção do ligeiríssimo arquear do meu peito cada vez que o
organismo reclama oxigénio, nenhum outro movimento anima os meus membros, o meu
rosto, a minha carne ou o meu corpo inteiro. Não sei por quanto tempo ficarei
assim, adivinhando, por entre as pálpebras quase adormecidas, o tremelicar
nervoso da vela que, altiva, se ergue acima dos livros empilhados na mesinha de
cabeceira, aqui ao lado. Sorriso. Um sorriso só. Sorriso-irónico, todavia doce.
Lembro o dia que há-de chegar, em que uma rajada de vento mais impetuosa
atravesse furtiva as portadas da janela e derrube a vela sobre os meus livros.
Lembro o cheiro de papel queimado, a luz alaranjada e cada vez mais intensa,
que hei-de adivinhar mesmo com os olhos cerrados. E lembro a vontade de
permanecer aqui, quieta, estendida, silenciosa. Até ser una com a chama. O meu
espírito não conhece o Tempo e, na minha cabeça, os tempos verbais confundem-se
como se fossem um só. Para mim não há pretéritos, passados ou futuros. O hoje
pode ser um momento que nunca chegará a existir, o futuro pode surgir como uma
lembrança tão concreta como o dia de ontem, e o passado pode ser reinventado,
redesenhado, remodelado ou apagado. Por isso é que o Tempo deixou de ter
importância para mim. Por isso é que me deixo ficar estendida e sonolenta nesta
cama fria e impessoal. A passagem das horas, que desencadeia o longo arrastar
dos dias e um penoso acumular de semanas (e meses. e anos.) é insuportável para
aqueles que, como eu, esperam algo que nunca (nunca) virá a acontecer. Por isso
alheio-me ao tempo e deixo que, em mim, se aloje a memória de todos os dias que
passaram, juntamente com os dias que hão-de vir. E, nesse emaranhado de datas
que desafia o pachorrento e previsível arrastar do calendário, arrisco-me ainda
a recordar os dias que nunca hão-de vir. Aqueles pelos quais há tanto espero.
Ouvem-se passos nas escadas.
Num instante sou arrancada a este morno
torpor do pensamento. Sei que és tu quem vem a subir e isso basta para que o
arquear até agora imperceptível do meu peito, se torne mais intenso e profundo,
como se, respirando assim, pudesse sugar-te dessas malditas escadas e trazer-te
até mim. Doce ilusão… a lembrança do dia em que virás até mim é daquelas que
nunca hão-de vir. E eu sei-o. Embora isso não me impeça de a recordar
constantemente.
Mais passos na escada. Cada vez mais
perceptíveis, mais intensos à medida que te aproximas do patamar.
Malditas escadas. Malditos degraus de
madeira que gemem dolorosamente a cada passo e me tornam consciente da tua
chegada. Malditos. Malditas escadas, maldito patamar. Maldita casa antiga com
os seus corredores sem janelas. Ah, o corredor… Maldito. Maldito acima de todos
os outros. Um único corredor, nem grande nem pequeno, nem feio nem bonito, mera
passagem. Um único corredor a separar duas portas, dois quartos, duas vidas
totalmente independentes. A minha e a tua. Sempre que subo essas mesmas
escadas, deixo o meu olhar triste e vazio espraiar-se nesse corredor tão
sombrio que nos separa. É uma distância tão pequena e, no entanto, a mais
intransponível de todas as distâncias.
Os passos nas escadas são agora mais
audíveis do que nunca. Pesados. Seguros. Passos poucos que me deixam adivinhar
um corpo que conheço só de sonhos.
O arquear do meu peito torna-se mais
intenso, quase doloroso. Sei que chegaste ao patamar. Não tarda estarás a
dirigir-te para o teu quarto e, por isso, este é, de todos os momentos, aquele
em que estás mais próximo de mim. Precisamente antes de te começares a afastar.
É este o mais feliz e o mais doloroso de todos os instantes.
Paras no cimo do patamar, antes dos
teus passos resolutos te levarem para longe de mim. Paras. Não há mais barulho
de passos pelo menos por uns instantes.
Gosto de pensar que estarás, como eu
quando percorro esse mesmo caminho, a sentir os nossos cheiros misturados. Do
teu quarto vem um cheiro de livros antigos, sempre com um ligeiro travo de
cigarro. Do cigarro que acendes mais vezes do que deverias ou seria necessário.
Do meu vem um aroma de canela, dos incensos que deixo a queimar na minha
ausência, misturado com o cheiro de açúcar queimado, prova das minhas
tentativas falhadas para, na cozinha, adoçar a vida. São cheiros muito
diferentes, os nossos, mas nesse local, nesse preciso local, misturam-se. E eu
paro sempre inebriada com aquele aroma agridoce que resulta tão bem como se de
um só cheiro se tratasse. Por isso gosto de pensar que, quando paras no cimo
das escadas, estás a sentir o mesmo.
Lá fora, voltam a ouvir-se passos.
Mas… que se passa?! Não parecem
afastar-se.
Continuam intensos. Cada vez mais
intensos.
Que há?... Sinto que te aproximas. Os
teus passos ecoam no corredor e são amplificados pelas paredes antigas.
Chegam-me aos ouvidos como um ruído ensurdecedor e vêm morrer no meu coração.
Acelerado. Tão acelerado. Mais passos. Mais próximos.
Será que estou a enlouquecer? Eu sei
que este é daqueles dias que nunca vão acontecer. Então porque é que os teus
passos te trazem hoje até mim? Estarei louca?... Será delírio?...
Os passos calam-se novamente. Estás
parado à minha porta. Sei-o.
Quantas vezes não esperei sentir-te aí…
Tão próximo… O meu corpo treme, num delírio quase febril. Tento suster a
respiração. Ouvir qualquer som. Ouvir-te. Ouvir a tua respiração atrás da minha
porta. Tento ouvir-te mas o quarto está mergulhado num profundo silêncio. E,
detrás da porta, nada se ouve. Fecho os olhos com força e cerro os punhos
obrigando-me a ficar deitada, apesar da minha vontade ser de correr até aquela
porta de madeira e abri-la da par em par. Mas contenho-me. Olhos fechados, como
quem dorme. Sei que, se realmente o quiseres entrarás. Há muito tempo que não
fecho aquela porta. Está no trinco. Sem chave. É a minha forma de dizer que te
espero. Há tanto, tanto tempo… também é a minha forma de te ouvir melhor. Como
quando a música se eleva no teu quarto, suave e triste como uma carícia. Nesses
momentos chego a entreabrir a porta para a ouvir melhor. E, na escuridão espessa
que reina nestas quatro paredes, volteio como se dançasse contigo.
Um ruído. Finalmente. O puxador a rodar
a medo.
O meu coração bate tão acelerado que parece ribombar nos meus
ouvidos. Certamente que o ouves, mesmo à distância, a bombear o sangue pelo meu
corpo, todo ele sangue. Vermelho. Palpitante. Talvez não o devesse fazer mas
finjo-me adormecida. Mesmo quando os teus passos ecoam já no interior da
divisão… mesmo quando paras junto a mim e desces o rosto ao nível do meu como
quem vigia, diligente e preocupado, o sono de uma criança. Sei que ouves o
bater do meu coração. É impossível que o não ouças. Mas eu resolvi fingir e tu
representas comigo. Finjamos, pois, que não nos conhecemos e que nada dizemos
um ao outro. Finjamos que as nossas almas não se misturaram já; que não se
fundiram ao mesmo tempo que os cheiros dos nossos quartos. Antes, até.
Finjamos, pois. Fingirei até sentir os teus lábios descerem ao botão rubro da
minha boca para o sorverem e, se nesse momento não conseguir mais fingir e os meus
olhos se abrirem num lago transbordante deste amor doloroso que guardo dento de
mim, finge então tu… finge que não sabes o quanto significas para mim mas… fica
comigo.
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