segunda-feira, 25 de março de 2013

Natureza(s) Morta(s)

Remembrance © Zhang Jingna, 2009



I.
A imensidão do jardim de pedra. imponente. imutável. interminável. Na largueza calcetada e aprumada do jardim de pedra o tempo há muito deixou de passar. aqui todos os dias podem ser iguais a esta hora de sol em que a claridade morna se espalha pelas superfícies de mármore polido e nos entra nos olhos cansados. branca. quente. intensa. É na quieta melancolia deste jardim de pedra que repousam aqueles para os quais já deixou de haver futuro. e é por isso que, aqui, nesta cidade esquecida dentro da outra cidade, o tempo deixou há muito de passar. Os barulhos da metrópole – buzinas. carros. pregões – não chegam a este lugar. esbarram na muralha invisível e serena da eternidade que o rodeia e afasta do mundo. E é por isso que vimos. é por isso que vimos sempre. uma e outra vez, mesmo depois de todas as promessas. porque aqui há a paz que a cidade lá fora sempre nos negou. Aqui há sentimentos talhados na pedra. há dor. e saudade. e fé. há rochas que ganharam forma de gente. e nome de gente. que choram como, um dia, já chorou gente. E há os gatos. gatos de todos os tamanhos. de todas as cores. de todos os feitios. gatos preguiçosos estendidos sob o morno sol de março. parados. pachorrentos. sempre altivos. gatos que se afastam ligeiros quando se aproximam os nossos passos. quando sentem os nossos pés. E, depois há este degrau de pedra. granítico. morno. polido pelos anos. E os nossos corpos próximos, esquecidos de tudo. do tempo. da vida. talvez até um do outro. E há a minha cabeça pousada no teu ombro. criança cansada de brincar. quieta. sonolenta. e triste. sempre triste. Há os meus olhos fechados e o sol que me escorre pelas pálpebras numa doçura dourada de mel. Neste refúgio de pedra, por um instante, tudo parece ter desaparecido: a imensidão do jardim de pedra - imponente. imutável. interminável – e as imagens de pedra –feitas de dor. de saudade. de fé- e a preguiça dos gatos sob o sol de inverno – parados. pachorrentos. sempre altivos - e até a dureza deste degrau onde esquecemos os corpos - granítico. morno. polido pelos anos - . Ficou só o silêncio. inteiro. imenso. maior do que o tempo e do que nós. E há as nossas vozes. as nossas vozes -baixas, ténues, arrastadas- a não serem mais que o silêncio. E há o meu canto. o meu canto – murmúrio hesitante. e triste. sempre triste. - a mais não ser do que o silêncio. E depois… depois, há os meus dedos –pequenos. trémulos. tímidos.- aninhados no refúgio quente da tua mão. os meus dedos a serem mais, muito mais do que este silêncio - inteiro. imenso. maior do que o tempo e do que nós-. a serem o segredo que trago guardado no peito. a serem o abraço que trago aferrolhado nestes braços inertes. como mortos.

II.
A quietude acolhedora do jardim na primavera. fresco. verde. e belo, tão belo. Perdidos na frondosa solidão daquele verde líquido, podíamos quase acreditar que era nosso, todo o jardim. Que era nossa a estação inteira que se adivinhava, anunciada pela suave fragrância das minúsculas violetas. frágeis. insignificantes. e encantadoras na sua deliciosa pequenez. Que eram nossos os risos que as aves ecoavam em alegres trinados enquanto sobrevoavam os nossos corpos. rápidas. ariscas. cheias de vida. Ou que era da mornidão líquida do nosso olhar que nasciam os lagos pejados de nenúfares. rosados. altivos. e perfeitos, tão perfeitos. Desse jardim, então vestido de festa, conhecia eu todos os recantos. todas as histórias. todos os caminhos. dele, sabia as mais informativas das lições. as mais curiosas das histórias. e as mais secretas das lendas. dele, conhecia todas as flores - frágeis. insignificantes. e encantadoras na sua deliciosa pequenez -, todas as aves - rápidas. ariscas. cheias de vida -, cada um dos milhentos nenúfares - rosados. altivos. e perfeitos, tão perfeitos -. Mas, desde aquela tarde, tudo isso deixou de ter importância. do meu jardim de sonhos, não recordo outros recantos. nem histórias. nem caminhos. dele, guardo apenas a lembrança do teu rosto sob o tecto cúmplice da vegetação. do rosto que adivinhei mesmo tendo fechado por momentos as cortinas dos olhos quando os teus lábios desceram sobre os meus. E sei que o jardim era todo ele primavera naquele final de abril. quase maio. quase luz. quase amor.

III.
As quatro paredes do meu quarto. lisas. frias. impessoais. fronteiras que, como muralhas, ergui entre mim e o mundo. e os outros. e a vida. Nas quatro paredes do meu quarto não há mais que as sombras fugidias desenhadas a medo pela escassa luz das velas. as sombras e a estante. a estante dos meus livros como um baú de sonhos. ordenada. metódica e patologicamente ordenada. os livros dispostos por tamanhos. por autores. por temáticas. os livros e a máscara. a máscara de penas. adornada. rica. e deslocada. ali colocada por pirraça. por piada. por necessidade. por precisar de um símbolo visível desta a farsa em que tranformei a vida. E, no meio das paredes do meu quarto - lisas. frias. impessoais - a cama. pequena. muito pequena. cama de um só num quarto de um só. E, na beira da cama que devia ser de um só - que é de um só - o teu corpo esquecido. o corpo que aprendi a conhecer como se fosse meu. cansado. vergado como se fosse velho. como se tivesse o mundo a pesar-lhe sobre os ombros largos. como se pudesse fechar os olhos e tudo desaparecesse num instante: o meu quarto e as suas paredes - lisas. frias. impessoais – e a estante como uma montra de livros ordenados - por tamanhos. por autores. por temáticas - e a máscara de penas - adornada. rica. e deslocada - e os meus joelhos afundados no colchão atrás de ti. os meus joelhos quase encostados ao fundo das costas. quase meigos. quase ternos. quase capazes de, num toque, te dizerem tudo o que deixei por dizer todo este tempo. quase. quase. nunca mais que isso. E, depois, há os teus cabelos. longos. lisos. escorridos pelas costas vergadas pela vida. ou pelos sonhos que deixaste de perseguir. ou pelas tristezas de que nunca me quiseste falar. E há as minhas mãos. as minhas mãos pequenas. frias. trémulas. tímidas. as mãos que gosto de afundar nos fios dos teus cabelos - longos. lisos. escorridos pelas costas vergadas pela vida -. as mãos com que te penteio lenta e cuidadosamente. as mãos de criança pequena a embelezar a boneca preferida. as mãos de velha que nunca soube crescer e se enterram nos fios dos teus cabelos que me escorrem por entre os dedos e os tentam prender como quem ama um sonho de menina.

IV.
A minha cama. a cama que foi nossa muito antes de ser minha. estreita. singela. quase despida. Nesta cama, agora órfã de ti, espraia-se ainda a brancura lisa dos lençóis. frescos. limpos. alinhados num aprumo triste de sudário. E, no meio da desolação arrumada que aqui se instalou aquando do vazio esmagador da tua ausência, o meu corpo. pequeno. magro. vergado. o meu corpo fraco. o meu corpo, outrora teu, numa tristeza de abandono. esquecido contra o desconforto frio da parede lisa. E, do outro lado do quarto, inútil, a cama – estreita. singela. quase despida - não mais que um traste velho, comido pelo tempo. Na lisura impessoal dos lençóis que agora a cobrem - limpos. alinhados num aprumo triste de sudário - é quase impossível imaginar a mornidão doce dos nossos corpos juntos, ali jogados. brilhantes. trémulos. esquecidos de tudo. e juntos. sempre tão juntos. numa proximidade capaz de desafiar as leis da física. E, no entanto, são os nossos corpos que vejo quando a olho. Os nossos corpos - brilhantes. trémulos. esquecidos de tudo - como quando ainda aqui estavas. enquanto ali estávamos juntos - sempre tão juntos. naquela tal proximidade capaz de desafiar as leis da física - e podia aninhar-me no calor do teu peito e ouvir o bater do teu coração a ecoar-me no corpo quando pousava a cabeça no ninho quente da tua ternura. como quando me olhavas nos olhos e me pedias palavras. respostas. explicações. e eu te dava apenas o negro fundo e líquido do meu olhar e o vazio grande do meu silêncio. Agora, que não estás mais aqui, penso que devia ter-te dado o que querias. que devia ter-te dado palavras. respostas. explicações. devia. devia. devia. Mas, mesmo que o tivesse feito, sabe que nunca poderia ter-te dado mais do que o meu olhar e o meu silêncio. porque, neles - no negro fundo e líquido do meu olhar e no vazio grande do meu silêncio – dei-te, já, tudo o que sou.

V.
O meu rosto. pálido. magro. macilento. o meu rosto triste, tão igual ao que vejo todos os dias reflectido no espelho velho do velho armário de quarto de banho. pequeno. pobre. e ferrugento. o meu rosto tão igual ao resto do corpo. esquelético. trémulo. e fraco. o meu rosto –pálido. magro. macilento- a olhar-me do outro lado daquele vidro que, como a água dos lagos fundos, me devolve a imagem que preferia não ver. a imagem de traços nítidos de um rosto triste, única continuação lógica do meu corpo triste -e esquelético. e trémulo. e fraco -. do meu corpo, como lhe chama a ciência, anémico. deste corpo que a fisiologia espera, em vão, curar. com suplementos. e vitaminas. e ferro. ignorando que, um dia, a imagem do meu rosto reflectido pelo espelho velho do velho armário do quarto de banho – pequeno. e pobre. e ferrugento -, era diferente. e era-o porque, uns quantos centímetros acima do meu rosto magro, estava a imagem do teu. sério. belo. e distante. sempre distante. ignorando, afinal, que não é possível à ciência curar-me - com suplementos. ou vitaminas. ou ferro - porque, o que ela chama anemia, chamo eu saudade. ou solidão. ou melancolia. e, essas, só a imagem do teu rosto – sério. belo. e distante. sempre distante - pode curar. Por isso, encarando uma última vez o reflexo incómodo que o vidro me devolve como por magia, é o teu nome que se desenha na palidez espectral dos meus lábios. baixo. e tímido. como uma prece.



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