segunda-feira, 18 de março de 2013

Canto de Chão



Sem título (Júlia na cozinha), © Catarina Botelho, 2007



É um dos poucos recantos em que o jeito são da província ainda subsiste, acantonado num recanto escondido da cidade grande onde, por descuido, ainda não chegou o bulício impessoal da metrópole. Aqui, todos se conhecem pelo nome. As mulheres chegam e são recebidas com um daqueles sorrisos grandes que dizem “bom dia dona fernanda. vai ser o peixinho de sempre?” ou “então dona helena, já está melhorzinha daquela gripe?” Os homens, esses, chegam e fala-se de futebol. Diz-se “então o seu benfica? desta vez é que foi, ah?!”.
Eu, porém, sou apenas a menina: “bom dia menina. então o que vai ser hoje?”. Excepto, claro, quando venho com ele. Nesses dias, passo de menina a jovem. Passamos, aliás. Os dois. Como se fossemos um só: “então jovens, que vão desejar?”. Todos os outros dias, no entanto, sou a menina. A menina que chega e se senta invariavelmente na mesa do canto e, enquanto come, vai rabiscando o papel irregular que resguarda a toalha lisa, cuja cor o tempo e as sucessivas lavagens se encarregaram de tornar indefinida. (“coitadinha, é lunática”; é o que diz a empregada, muito loira, imensa e intoleravelmente loira, farta de carnes e com os lábios muito pintados, muito vermelhos, enquanto me dirige um sorriso quase doce, quase terno, daqueles sorrisos de que só as mães são capazes).
Da minha mesa, daqui do canto, vejo tudo isto. Conheço os rostos de todos os que por aqui param e, de alguns, adivinho até as histórias. Gosto disto. Gosto do barulho das conversas que se sobrepõe à voz da garota que, com uma cançoneta qualquer dessas que fazem as gentes bater o pé a marcar o ritmo, encerra o medonho programa da manhã que o televisor transmite antes de começar o telejornal. Gosto dos quadros, meios tortos, meios toscos, que enfeitam as paredes. Gosto, principalmente, daquela reprodução imperfeita do Charlot com o menino, que enche uma reentrância da parede. Há qualquer coisa de genuíno que se respira por cá e me parece perdido, quase extinto, em todos os lugares. E gosto até da dona da casa, que me sorri sempre que me levanto para pagar a conta, conta que há muito deixei de pedir porque tanto eu como ela a sabemos de cor já que, todos os dias, ao prato, tem apenas de acrescentar a mesma bebida. E o mesmo vício. Hoje, particularmente, acho até que a adoro quando, ao receber, me pergunta com o sorriso complacente de quem justifica as minhas excentricidades: “a menina desculpe perguntar mas… é escritora?” e me ouve responder, com o mesmo sorriso “não, não; sou só lunática, mesmo.”


 

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