sábado, 16 de março de 2013

Fotografia

Forgotten Fairytales© Zhang Jingna, 2007
Model: Sveta
Photography/Art Direction: Zhang Jingna
 


Ele era especial, disso tinha a certeza. Como tinha a certeza que, tal como ela, tinha chegado àquela casa de horrores pelo próprio pé; que estava ali por vontade própria. Não tinha sido despejado por outros como a velha louca que se baloiçava incessante e eternamente na sua cadeira de baloiço, cantarolando palavras doces num qualquer dialecto desconhecido desde que um familiar mais frio ali a deixara por não ter mais utilidade; ou como aquele homem de rosto cansado e triste que passava os dias a arrancar camadas de tinta da parede com as unhas, encostado a um canto da sala onde um vermelho acastanhado substituía, agora, o branco caiado original, de tanto sangue que ia secando naquelas paredes, deixado pelas suas mãos febris; ou como a mulher bonita que passava as noites em sobressalto, dando voltas doentias na cama e gritando com tal intensidade que quase se podia adivinhar um batalhão inteiro de monstros aguardando a escuridão densa da noite para a atacar; ou como o miúdo de olhos enraivecidos que ocupava dias e dias a desmembrar bonecas intercalando-os com umas tantas noites a apanhar borboletas, que, com um alfinete, prendia ainda vivas à mesa grande de madeira, deleitado com o espectáculo de as ver debaterem-se até à morte; ou como o velho de dentes enegrecidos e dedos longos, amarelos e encarquilhados do cigarro, nas mãos trémulas da idade, que se passeava para trás e para diante nos poucos metros quadrados daquela divisão e recitava poemas horas e horas. Não. Ele era diferente de todos. Era jovem e belo e dificilmente se poderia imaginar porque um homem assim escolheria abrigar-se naquela casa, com aquelas companhias… Provavelmente teria as suas razões -e fortes- do mesmo modo que ela as tivera para, ainda criança, se enfiar naquele buraco. Mas ela nunca se perdera a pensar muito nisso. Como não pensava no porquê de ele ser o único que se atrevia a sair da casa, embora sempre voltasse. Algumas vezes, passavam-se muitas luas antes do seu regresso, outras bastava o sol nascer no horizonte para ele voltar. Ainda assim, de todas elas, o ritual repetia-se. Voltava e enclausurava-se no quarto que, apesar de ninguém assim o ter decidido, era só dele; um quarto que nem precisava de porta para afastar os curiosos; quarto onde só ela –assim que ele saía e sem que ele nunca o soubesse- entrava. Ela ia porque sabia o segredo das horas que ele passava fechado dentro daquelas quatro paredes: ele desenhava. Muito. Enchia as paredes de cima a baixo com todo o tipo de imagens e ela, que não tinha janelas por onde visse o mundo, perdia-se a olhar cada traço, cada figura, sonhando com quimeras que sabia não existirem ou com animais que, em criança, ela própria conhecera. Às vezes, depois das viagens mais longas ele voltava e desenhava monstros, muitos, muitos monstros… E ela achava que esses monstros eram o mundo, o mesmo mundo do qual fugira há tanto tempo atrás. Então, escrevia. Apanhava todos os papéis da casa, aproveitando até as coisas mais ridículas, como embalagens de farinha ou guardanapos e escrevia. Muito. Enchia os papéis de cima abaixo com todo o tipo de textos, todo o tipo de palavras, alegres ou tristes, cruéis como lâminas ou suaves como veludo. Tudo dependia da imagem que as inspirava. Às vezes ele ficava muitos dias sem sair de casa. Passeava-se por lá, por entre os estranhos habitantes daquele buraco e, depois, voltava a fechar-se no quarto. Eram esses os dias mais felizes dela, quando ele finalmente saía do quarto. Era nessa altura que ela sabia, ainda antes de entrar, que encontraria anjos pintados de fresco a ocupar mais um nicho da parede.
Assim se passou muito tempo. Muito, muito tempo. Tempo suficiente para ele encher as quatro paredes do quarto e ela acumular uma montanha de papéis cheios de outras tantas imagens, desenhadas com palavras. Tempo suficiente para as roupas de criança que ela trazia não serem mais capazes de encobrir que se tornara numa mulher. Mesmo assim, deixou-se ficar. Pensava que podia ficar lá para sempre. Até ao dia em que, depois de ele sair, percebeu que já só restava uma nesga de parede por ocupar; um último desenho e ele não teria mais onde colocar as imagens que trazia consigo de cada vez que voltava. E ela não teria mais o que escrever. Foi nessa altura que decidiu partir, antes mesmo de saber o que significariam os últimos traços que ele colocaria ali. Antes de sair e deitar um último olhar por aquelas paredes onde se misturavam anjos e demónios, foi colocar aquele molho improvável de papéis disformes e amassados, onde se adivinhava uma letra miúda e certinha, no chão ao lado do único espaço da parede que ainda restava por preencher. No cimo do monte de papéis, agora toscamente atados numa tentativa vã de fazer um laçarote, alinhavam-se duas linhas apenas, as únicas que lhe deixou antes de partir; as únicas que lhe dirigiu durante todos aqueles anos:

Deste-me as imagens.
Hoje, dou-te eu, as palavras.



1 comentário:

Blood Tears disse...

E que belas, as palavras.....

Kiss*