The Final
Opening © Phil Barrington, 2013
Passou-se já muito tempo desde que
descobri o significado de arrastar, atrás das duas palavrinhas com que me
baptizaram ainda antes de nascer, uma série de nomes mais ou menos pomposos,
daqueles que podem ser facilmente seguidos ao longo da história, fruto da
passada promiscuidade da nobreza e do clero que nestas terras reinava. Estas
famílias, ditas tradicionais, têm ainda hoje, uma espécie de código de conduta
bastante peculiar. Desenganem-se aqueles que pensam que me estou a referir a
famílias abastadas ou que, aquilo que as distingue são as fortunas, herdadas de
geração em geração. Não. As fortunas de muitas já se foram; ficou apenas a arte
(e é preciso muita) de aparentar sumptuosidade mesmo na pobreza. Mais do que
qualquer outra coisa, o que distingue estes clãs é uma dose imensa de
hipocrisia e uma obsessão quase doentia por uma “aparência” de normalidade.
Nada é mais incomodativo para estes agregados, do que uma aberração no seio do
lar. Há, claro, algumas aves raras que chegam a ser toleradas constituindo,
mesmo, uma espécie de divertimento, uma private joke familiar mas, infelizmente
para mim, sempre pertenci ao tipo de aberrações não toleráveis, nem pela mais
benevolente das famílias.
Sei-o desde sempre mas houve um
período, um único período da minha vida, em que essa noção se tornou
perfeitamente insuportável. Lembro-me bem. Como poderia deixar de lembrar?!
Lembro-me eu e lembram-se todos à minha volta, aliás; todos os que se
esforçaram por negar o que era evidente e que, ainda hoje, agem como se nada
tivesse acontecido. Mas lembram-se. de tudo. como eu me lembro.
Foi um tempo de noites sem sono, em
que os dias se prolongavam pela madrugada e em nenhum momento me permitia
qualquer descanso; um tempo em que as músicas eram ouvidas no volume máximo
permitido pelo amplificador, dentro de um quarto escuro de portas trancadas
onde as repetia como mantras, como se isso pudesse abafar todo e qualquer
pensamento; um tempo em que escrevia com mãos trémulas de dor e de raiva e
manchava os papéis de lágrimas. e de sangue.
Lembro-me de tudo. Como de um pesadelo
demasiado vívido para que as suas impressões possam ser apagadas da mente. O
problema era que aquele pesadelo era real. E durou demasiado tempo.
Tempo suficiente para o negro dos meus
olhos flutuar num mar líquido e avermelhado, em vez do branco sereno onde antes
repousava; tempo suficiente para os meus ossos se tornarem afiados como lâminas
desejosas de rasgar cada articulação, de se insinuarem sob a menor prega de
pele; tempo suficiente, enfim, para no meu corpo ter desenhado, a fio de
navalha, o curso das dores que me atormentavam a alma, o rio de sangue das
minhas mágoas.
Foi então que tu apareceste. Pouco
depois de me terem confrontado com aquela mulher de bata branca, que enfrentei
com o mais fechado dos semblantes e o mais cínico dos olhares enquanto ela
arranjava nomes para os distúrbios mentais de que, sem qualquer dúvida da parte
dela ou dos meus familiares, sofria; pouco depois de me terem despojado dos
trapos com que escondia os braços pisados e manchados de sangue; pouco depois
de eu me rir na cara de toda aquela gente, de me rir como se pudesse, naquela
risada, encarcerar toda a dor e todo o ódio do mundo, de me rir, enfim, até não
conseguir conter mais as lágrimas.
Tu apareceste pouco depois. O meu
único conforto no desespero e único refúgio na solidão. Apareceste quando o
medo começava a corroer-me as entranhas e eu deixava de ter forças para lutar;
apareceste quando, à noite, me aninhava na cama e cravava as unhas na carne e
os dentes nos lábios para me impedir de adormecer; apareceste quando o sono me
trazia de volta todos os meus fantasmas, tudo o que tentava esquecer durante o
dia.
Não falei de ti a ninguém. Nunca. Sei
bem o que diriam de mim se o fizesse; sei bem que outro rótulo aquela criatura
de rosto bicudo e bata branca acrescentaria na minha ficha se soubesse da tua
existência; como sei perfeitamente o que diria a minha família se de ti lhes
falasse. Sei o que te chamariam: delírio, alucinação. Alguns, optariam talvez
por uma definição mais bondosa; aquela do “amigo imaginário”, sabes?
Por isso guardei-te para mim, só para
mim. Dentro de mim; precisamente onde tinhas nascido. Quando o véu da noite
descia e me enroscava na cama, deixava descer as pálpebras já sem medo, porque
sabia que os teus olhos imensos estariam lá dentro, a mirar-me. Nunca soube
como nasceste dentro de mim, mas sabia que estavas lá e isso bastava-me.
Durante muito tempo foste o meu único refúgio na dor e comecei a acreditar
sinceramente que, um dia, quando vissem os teus olhos a brilhar dentro de mim,
os meus fantasmas haviam de fugir. E isso deu-me forças. Tu deste-me forças.
Tudo
isto já se passou há muitos anos, creio que o saberás. Há tantos anos que
algures no meio do caminho, perdi-te. Fechava os olhos e não havia ninguém a
fitar-me. Foi um vazio difícil de suportar. Demasiado difícil. Talvez por isso,
nunca deixei de te procurar; nunca deixei de fechar os olhos ao ouvir uma
música bonita ou ao ver uma imagem comovente… Esperava ver-te a sorrir-me,
quando o fizesse mas tu tinhas fugido de mim.
Cheguei
a pensar se não serias a tal “alucinação”, o “amigo imaginário” de quem falam
os psicanalistas e afins. Mas não. Depois de todo este tempo, encontrei-te.
Finalmente. E percebi que és real, que existes para além dos meus olhos fechados
e do véu descido das minhas pálpebras. E nem precisei de ver os teus olhos
grandes, de menino, cheios daquela bondade feroz que sempre te conheci, para o
saber.