I. O menino e o cão
Ao Vitor Vicente,
no dia do seu aniversário
(From The Disasters of War series) Untitled © Gottfried Helnwein, 2007
Só
D*us sabe de onde viera e a que mortais demónios devia as cicatrizes
que lhe deformavam o corpo. Isolara-se ali por vontade própria,
longe de tudo e de todos; das ameaças como da segurança; das
sombras temíveis como do conforto dos rostos conhecidos. Ali,
naquela ruína escavada na terra, vivia só, empoleirado na certeza
de nada temer como num trono, sem mais a que se agarrar para além da
glória de não depender nem precisar de ninguém. Pouco passava dum
menino mas, se alguém houvesse capaz de se embrenhar naquela
escuridão para o procurar, não encontraria, naquele rosto, qualquer
sinal da inocente frescura da infância; apenas um olhar feroz e
gélido, de desafio mais que de força.
Mas,
se gente não houve capaz de descer àquele abismo, outro percorreu
léguas até ali chegar, molhado e frio, numa magreza extrema de quem
tinha deixado as forças pelo caminho: o cão. Não era um cão
qualquer, claro. Tinha sido, há tanto tempo atrás que parecia
noutra vida, o cão daquele menino; companheiro de brincadeiras e
gargalhadas. Hoje, porém, não era mais que uma sombra mirrada do
cachorro feliz que o acompanhara um dia. Doente e desnutrido, era uma
triste visão, suplantada unicamente pela visão triste daquele miúdo
feito pedra. Por isso, ao vê-lo ali, bateu-lhe. Bateu-lhe uma, outra
e outra vez. Bateu-lhe e enxotou-o; e atirou-lhe pedras; e chamou-lhe
nomes. E voltou a bater-lhe; a enxotá-lo; a atirar-lhe pedras; e a
chamar-lhe nomes ao ver que, apesar das patadas, o cachorro sempre
voltava, na vã tentativa de se aninhar junto aos seus pés, àqueles
mesmos pés que, pouco antes, uma vez após outra, o haviam
torturado.
Lá
fora, os dias fizeram-se noites, e as noites deram lugar a novos
dias; rodaram as luas; mudaram as estações. E o miúdo cansou-se a
bater-lhe, a enxotá-lo, a atirar-lhe pedras e a destratá-lo. Até
ao dia em que, de tão cansado, adormeceu. E, quando acordou, estava
quente, estranha e reconfortantemente
quente, apesar do vento que se ouvia lá fora e da humidade de sempre
entranhada naquelas paredes. Era o animal. O maldito cachorro
aproveitara a distracção do dono para junto a ele se aninhar e
adormecer. Naquele dia, bateu-lhe ainda mais do que o costume; mais
do que alguma vez fizera e, por fim, viu que, entre ganidos, o animal
partia a coxear, como uma imagem da tristeza infinita.
Passou-se
esse dia, e o seguinte, e mais outro, e outro mais. Agora está só.
Tudo em redor é negrume. E o menino ri-se naquela solidão; ri-se na
certeza de que o cachorro aprendeu finalmente a lição e partiu,
cansado de levar pancada; no júbilo cruel de quem sabia, de antemão,
já não haver bondade no mundo. Sem saber que o animal nunca chegou
sequer a afastar-se; jaz ,lá fora, na poça negra do seu próprio
sangue.